O autor

https://futebolcartesiano.blogspot.com/2013/11/resenhas-inventadas-2.html
Faz dois meses que terminou o
prazo pra que eu entregasse a primeira versão do livro que a editora me
encomendou. É meu sexto livro, os outros cinco venderam bem. Não ficarei aqui
com falsa modéstia: venderam bem porque sou um escritor ótimo, não apenas
porque sou um conhecido jogador de futebol. Não pense que o tema dos meus livros
é uma dessas bobagens autobiográficas, contando uma história de vida bem
sucedida no esporte. Eu cago pra minha carreira esportiva, se pudesse seria
apenas escritor. Mas escritor - mesmo um escritor bom como eu - passa fome no
Brasil, e no meu clube ganho 200 mil reais por mês fora premiações e direitos de
imagem.
Estávamos concentrados pra jogar
pela décima terceira rodada do Campeonato Brasileiro. A torcida está puta
comigo porque sou centroavante e passei em branco até aqui. O time tem o pior
ataque do campeonato e os torcedores são ignorantes demais para perceber que a
falta de gols é consequência do esquema tático equivocado adotado pelo
treinador. Tenho vontade de escrever um ensaio sobre a burrice do torcedor
brasileiro, mas não posso. Prometi para meu editor um novo romance, no estilo
realismo fantástico, à Garcia Marques. Merda, odeio livro com tema encomendado,
é a primeira vez que faço isso.
De noite
jogamos contra o Atlético Paranaense, no Paraná. Um jogo horroroso, nosso
treinador frisou na palestra que um empate era ótimo resultado. Me deu vontade
de pedir a palavra e dizer que não, que o empate é péssimo, que estamos a dez
pontos de distância da zona de classificação para a Libertadores, que nossos
adversários diretos ganharam na rodada, que ele largasse mão de ser bundão e
botasse o time pra frente, que eu não estava recebendo uma bola decente pra
ficar em condições de finalizar, nos últimos quatro ou cinco jogos. Ainda bem
que respeitei a hierarquia e não disse nada. No jogo, lá pelos 30 e poucos
minutos do segundo tempo, recebi um lançamento precioso do primeiro volante –
um cabeça-de-bagre que não costuma acertar nem passe de dois metros -, matei no
peito, parti com ela dominada pra cima do zagueiro, dei uma finta e entrei na
área. Era só tirar do goleiro e sair pro abraço, mas, por ansiedade, chutei por
cima. Na saída do jogo, fomos vaiados pela nossa torcida, que viajou mais de
300 quilômetros só para me hostilizar. Eu não ligava, queria mesmo era ter uma
ideia boa pra finalizar meu livro.
***
“13 jogos sem marcar um gol, um
centroavante que custou 13 milhões de reais”, eles diziam. Treze, treze. Pensei
em escrever uma subtrama, colocando no romance um personagem supersticioso que
recusa uma promoção porque a nomeação se dá no dia 13. Mas Machado de Assis já
usou isso em Memórias Póstumas de Brás Cubas. Caralho, meu livro está empacado,
tudo o que eu penso já foi feito antes.
Hoje não
faremos treino tático, é só recuperação física porque jogamos ontem. Mas o
treinador é uma besta, um idiota que só dá rachão. Com certeza vai me mandar
treinar finalização, como se meu problema fosse esse. Difícil explicar pra esse
e pra todos os outros xucros que eu estou passando por uma crise criativa, refletida
também na linguagem corporal dentro de campo. Linguagem é tudo, esses idiotas
não percebem isso.
***
Jogo contra o Flamengo domingo,
concentração desde sexta. Sou contra a concentração, já declarei isso em diversas
entrevistas na tevê e em rádios. Alguns companheiros concordam comigo, mas, no geral,
todos tem medo de manifestar o que pensam, por medo do treinador. Peço para ser
liberado, tenho uma vernissage no sábado. O treinador não quer saber de
vernissage, não quer saber de jogador enchendo a lata, não quer saber de nada,
quer saber de gol e vitória. Não gosto de lançar mão desse recurso, mas
telefono para meu padrinho na diretoria e consigo minha liberação.
Fazer um
gol, terminar meu livro. Flamengo mete 3x0, e eles estão devendo dois meses de
salários e vinham de três derrotas. Torcida me vaia, sou um incompreendido. Meu
editor quer saber do livro, quer pelo menos um primeiro tratamento do texto. Uma
guinada na trama, talvez? Um assassinato, vários suspeitos, mando o realismo
fantástico pra casa do caralho e começo um romance noir? O editor vai reclamar?
Porra nenhuma, sou a galinha dos ovos de ouro, camisa 10 da editora.
***
Na entrada do CT, faixas:
“Ou joga por amor, ou
joga por terror”.
“André Guilherme,
presta atenção! Menas artes, mais gols!”
“Aqui não é a Academia
Brasileira de Letras, queremos futebol!”
Argh... ignorantes!
Nesse
dia aconteceu um fato que mudaria o curso da história. No coletivo, o zagueiro
reserva deu uma entrada forte por trás no meia do time, e tomei as dores. Ele
me disse “vai, vai escrever um livro, pintar um quadro, fazer crochê”. Contei
até dez, não pega bem agredir fisicamente alguém. Mas no nove, o ódio não tinha
passado, e dei um rabo-de-arraia no infeliz. A turma do deixa disso chegou e
separou, mas os fotógrafos que cobrem o clube registraram tudo. Crise, crise,
crise. Manchetes que vendem jornais.
***
O treinador foi demitido.
Contrataram outro, aprovado por mim e pelos demais líderes do elenco. Particularmente
gostei da escolha: esse profissional, além de conhecedor de futebol, é culto, morou
em vários países, entende de artes e coleciona vinhos. Teria alguém pra
interpretar os sinais e montar um esquema que frutificaria nos meus gols, estes
voltando em profusão. Tempos novos começando, saravá.
Jogo seguinte, um clássico contra
o Palmeiras. Estava convicto de que faria finalmente um gol, quem sabe até
dois? O jogo foi muito pegado, os dois times marcando muito, não dando espaços
para o adversário. Na metade do primeiro tempo, recebi uma bola de costas na
entrada da área, com o zagueiro me marcando. Girei em cima dele, ele não teve
alternativa e me derrubou. Era o segundo amarelo dele. “Com um a menos, tudo
vai ficar mais fácil, as coisas estão indo bem”. Mesmo assim, estava difícil
encontrar espaços. Até que, aos 43 do segundo tempo, aconteceu: nosso lateral
conseguiu passar pelo marcador, foi pro fundo, cruzou. O zagueiro adversário
cortou com a mão e o juiz viu, deu o penal. Peguei a bola. É hoje, marco a
porra do gol, tiro o peso. Marcar o gol, essa semana termino meu livro.
Coloquei na cal. O goleiro pulava de um lado pro outro, parecia um mico, queria
me desconcentrar. Vou encher o pé, afundar esse filho da puta dentro do gol.
Ganhar o clássico, sair da crise, reagir, buscar o G4, ser transferido no fim
do ano, voltar pra Milão, frequentar desfiles, comer as melhores mulheres.
Chega desse país tacanho, dessas mentes sem evolução, de torcedor enchendo o
saco, de jogo quarta e domingo, de não ter férias, pré-temporada, de ser olhado
como uma aberração por estar fora da curva, por saber dar uma entrevista, me
vestir bem, não usar cordão de ouro e boné de aba reta. O juiz apitou, parti
pra bola, era questão de tempo pra sair comemorando, o que farei na
comemoração? Um gesto de punho, um sinal político? É de bom tom? Bato no
meio... Não!, bato à esquerda do goleiro. Mudo o canto na última hora, o
goleiro adivinhou o canto, o filho da puta vai chegar, o filho da puta vai
pegar, realismo fantástico é o goleiro brilhando na minha frente como se
tivesse contaminado com césio 137, e a bola atravessa-o como se fosse um
holograma, porra, a bola explode no fundo da rede. Segundos de silêncio e
paralisia, sinto o suor na minha testa, sinto meus ouvidos molhados pelo suor
entrando e então esquentam com o alarido que começa a inundá-los, é gol, é gol,
é gol, é gol. Que felicidade! Eles olham pra mim e correm pra me abraçar, eu
pulo e dou socos no ar. Acham que estou feliz porque desencantei. Tolos! Estou
exultante demais, já tenho o final do meu livro.
Eu tinha lido esse texto no dia da publicação mas esqueci de comentar. Muito bom. Só não decidi qual é o melhor ainda: se esse, ou o anterior!
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