O autor


Fazer o gol, terminar meu livro. O que acontecer primeiro.

Faz dois meses que terminou o prazo pra que eu entregasse a primeira versão do livro que a editora me encomendou. É meu sexto livro, os outros cinco venderam bem. Não ficarei aqui com falsa modéstia: venderam bem porque sou um escritor ótimo, não apenas porque sou um conhecido jogador de futebol. Não pense que o tema dos meus livros é uma dessas bobagens autobiográficas, contando uma história de vida bem sucedida no esporte. Eu cago pra minha carreira esportiva, se pudesse seria apenas escritor. Mas escritor - mesmo um escritor bom como eu - passa fome no Brasil, e no meu clube ganho 200 mil reais por mês fora premiações e direitos de imagem.

Estávamos concentrados pra jogar pela décima terceira rodada do Campeonato Brasileiro. A torcida está puta comigo porque sou centroavante e passei em branco até aqui. O time tem o pior ataque do campeonato e os torcedores são ignorantes demais para perceber que a falta de gols é consequência do esquema tático equivocado adotado pelo treinador. Tenho vontade de escrever um ensaio sobre a burrice do torcedor brasileiro, mas não posso. Prometi para meu editor um novo romance, no estilo realismo fantástico, à Garcia Marques. Merda, odeio livro com tema encomendado, é a primeira vez que faço isso.

De noite jogamos contra o Atlético Paranaense, no Paraná. Um jogo horroroso, nosso treinador frisou na palestra que um empate era ótimo resultado. Me deu vontade de pedir a palavra e dizer que não, que o empate é péssimo, que estamos a dez pontos de distância da zona de classificação para a Libertadores, que nossos adversários diretos ganharam na rodada, que ele largasse mão de ser bundão e botasse o time pra frente, que eu não estava recebendo uma bola decente pra ficar em condições de finalizar, nos últimos quatro ou cinco jogos. Ainda bem que respeitei a hierarquia e não disse nada. No jogo, lá pelos 30 e poucos minutos do segundo tempo, recebi um lançamento precioso do primeiro volante – um cabeça-de-bagre que não costuma acertar nem passe de dois metros -, matei no peito, parti com ela dominada pra cima do zagueiro, dei uma finta e entrei na área. Era só tirar do goleiro e sair pro abraço, mas, por ansiedade, chutei por cima. Na saída do jogo, fomos vaiados pela nossa torcida, que viajou mais de 300 quilômetros só para me hostilizar. Eu não ligava, queria mesmo era ter uma ideia boa pra finalizar meu livro.

***


“13 jogos sem marcar um gol, um centroavante que custou 13 milhões de reais”, eles diziam. Treze, treze. Pensei em escrever uma subtrama, colocando no romance um personagem supersticioso que recusa uma promoção porque a nomeação se dá no dia 13. Mas Machado de Assis já usou isso em Memórias Póstumas de Brás Cubas. Caralho, meu livro está empacado, tudo o que eu penso já foi feito antes.

Hoje não faremos treino tático, é só recuperação física porque jogamos ontem. Mas o treinador é uma besta, um idiota que só dá rachão. Com certeza vai me mandar treinar finalização, como se meu problema fosse esse. Difícil explicar pra esse e pra todos os outros xucros que eu estou passando por uma crise criativa, refletida também na linguagem corporal dentro de campo. Linguagem é tudo, esses idiotas não percebem isso.

                                                                                   ***


Jogo contra o Flamengo domingo, concentração desde sexta. Sou contra a concentração, já declarei isso em diversas entrevistas na tevê e em rádios. Alguns companheiros concordam comigo, mas, no geral, todos tem medo de manifestar o que pensam, por medo do treinador. Peço para ser liberado, tenho uma vernissage no sábado. O treinador não quer saber de vernissage, não quer saber de jogador enchendo a lata, não quer saber de nada, quer saber de gol e vitória. Não gosto de lançar mão desse recurso, mas telefono para meu padrinho na diretoria e consigo minha liberação.

Fazer um gol, terminar meu livro. Flamengo mete 3x0, e eles estão devendo dois meses de salários e vinham de três derrotas. Torcida me vaia, sou um incompreendido. Meu editor quer saber do livro, quer pelo menos um primeiro tratamento do texto. Uma guinada na trama, talvez? Um assassinato, vários suspeitos, mando o realismo fantástico pra casa do caralho e começo um romance noir? O editor vai reclamar? Porra nenhuma, sou a galinha dos ovos de ouro, camisa 10 da editora.

                                                                                   ***


Na entrada do CT, faixas:

“Ou joga por amor, ou joga por terror”.

“André Guilherme, presta atenção! Menas artes, mais gols!”

“Aqui não é a Academia Brasileira de Letras, queremos futebol!”

Argh... ignorantes!
Nesse dia aconteceu um fato que mudaria o curso da história. No coletivo, o zagueiro reserva deu uma entrada forte por trás no meia do time, e tomei as dores. Ele me disse “vai, vai escrever um livro, pintar um quadro, fazer crochê”. Contei até dez, não pega bem agredir fisicamente alguém. Mas no nove, o ódio não tinha passado, e dei um rabo-de-arraia no infeliz. A turma do deixa disso chegou e separou, mas os fotógrafos que cobrem o clube registraram tudo. Crise, crise, crise. Manchetes que vendem jornais.

                                                                                 ***


O treinador foi demitido. Contrataram outro, aprovado por mim e pelos demais líderes do elenco. Particularmente gostei da escolha: esse profissional, além de conhecedor de futebol, é culto, morou em vários países, entende de artes e coleciona vinhos. Teria alguém pra interpretar os sinais e montar um esquema que frutificaria nos meus gols, estes voltando em profusão. Tempos novos começando, saravá.

Jogo seguinte, um clássico contra o Palmeiras. Estava convicto de que faria finalmente um gol, quem sabe até dois? O jogo foi muito pegado, os dois times marcando muito, não dando espaços para o adversário. Na metade do primeiro tempo, recebi uma bola de costas na entrada da área, com o zagueiro me marcando. Girei em cima dele, ele não teve alternativa e me derrubou. Era o segundo amarelo dele. “Com um a menos, tudo vai ficar mais fácil, as coisas estão indo bem”. Mesmo assim, estava difícil encontrar espaços. Até que, aos 43 do segundo tempo, aconteceu: nosso lateral conseguiu passar pelo marcador, foi pro fundo, cruzou. O zagueiro adversário cortou com a mão e o juiz viu, deu o penal. Peguei a bola. É hoje, marco a porra do gol, tiro o peso. Marcar o gol, essa semana termino meu livro. Coloquei na cal. O goleiro pulava de um lado pro outro, parecia um mico, queria me desconcentrar. Vou encher o pé, afundar esse filho da puta dentro do gol. Ganhar o clássico, sair da crise, reagir, buscar o G4, ser transferido no fim do ano, voltar pra Milão, frequentar desfiles, comer as melhores mulheres. Chega desse país tacanho, dessas mentes sem evolução, de torcedor enchendo o saco, de jogo quarta e domingo, de não ter férias, pré-temporada, de ser olhado como uma aberração por estar fora da curva, por saber dar uma entrevista, me vestir bem, não usar cordão de ouro e boné de aba reta. O juiz apitou, parti pra bola, era questão de tempo pra sair comemorando, o que farei na comemoração? Um gesto de punho, um sinal político? É de bom tom? Bato no meio... Não!, bato à esquerda do goleiro. Mudo o canto na última hora, o goleiro adivinhou o canto, o filho da puta vai chegar, o filho da puta vai pegar, realismo fantástico é o goleiro brilhando na minha frente como se tivesse contaminado com césio 137, e a bola atravessa-o como se fosse um holograma, porra, a bola explode no fundo da rede. Segundos de silêncio e paralisia, sinto o suor na minha testa, sinto meus ouvidos molhados pelo suor entrando e então esquentam com o alarido que começa a inundá-los, é gol, é gol, é gol, é gol. Que felicidade! Eles olham pra mim e correm pra me abraçar, eu pulo e dou socos no ar. Acham que estou feliz porque desencantei. Tolos! Estou exultante demais, já tenho o final do meu livro. 


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  1. Eu tinha lido esse texto no dia da publicação mas esqueci de comentar. Muito bom. Só não decidi qual é o melhor ainda: se esse, ou o anterior!

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