Minha cabeça rolando no Maracanã

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Lotado estádio. Zeca Diabo conduz
pela esquerda, o marcador grita “bu!”, ele ri. Passa do jeito que dá, tabela,
recebe na frente. Entra na área, passa no meio de dois como um fantasma, o goleiro
cara a cara, goleiro se benze. Zeca Diabo, gol. A massa disforme urra, a massa
ameaçadoramente. Outra vez Zeca Diabo, um metro e meio de altura, não era mais
réu primário, fazia carretos na feira para ajudar a mãe a sustentar o lar,
porque o pai bebia. Zeca Diabo, analfabeto, dá um passe de letra.
Toniquinho, zagueiro. Vê Zeca
Diabo, grita “bu!”. O outro ri, passa por ele do jeito que dá. Toniquinho
corre, tenta cortar caminho, vê dois companheiros tentando cortar a passagem do
Zeca Diabo, não sabe por onde ele passou. Goleiro saiu, “filho da puta, já
ficou pelo caminho”, Zeca Diabo, gol. Toniquinho cospe com violência no chão,
está puto. Toniquinho, um metro e oitenta de altura, parrudo, brigão. Viu o pai
morrer numa briga de bar. A mãe virou puta. Quando atingiu a maioridade, botou
pra correr um vagabundo que rufiava a mãe, bebendo, dormindo e comendo em sua
casa. Nunca contou pra ninguém sua história. Zeca Diabo vem de novo, agora paro
o filho da puta nem que seja na porrada.
Aparício de uniforme preto,
cabelo engomado, empertigado, corre afetado. Profissão: funcionário público,
Sabesp. Ocupação principal: árbitro de futebol. Zeca Diabo recebe em posição
legal pela esquerda, sai da marcação, entra na área e passa no meio de dois
zagueiros. “Se se jogar, dou amarelo por simulação”. Mas ele segue, sua meta é
o urro da massa disforme. O goleiro sai, ele dribla o goleiro. A massa disforme
urra. A massa disforme gritara “bichinha, bichinha, parece uma gazelinha” para
Aparício. Aparício apareceu num sobrado de classe média baixa, bom aluno, bom
vizinho, prestativo, frequentava as quermesses da igreja. Estudava e gostava de
futebol, mas era perna de pau. A mãe dizia: não quero você com esses
vagabundos, nesse bairro só tem bandido. Aparício achava que a mãe estava
exagerando. Mas um dia, no campo de várzea, quando escurecia, rodearam Aparício
e gritaram “bichinha, bichinha, parece uma menininha”. Aparício gritou por socorro,
e os meninos riam, e curraram Aparício. Aparício tem ódio de gente. Zeca Diabo
vem de novo, Aparício vai expulsar se ele simular.
Nogueira, de agasalho esportivo. “Diabo,
caralho. Toca a bola, caralho. Quanto de jogo, Moreira? Caralho, 5 pro final.
Diabo... Caralho. Puta que pariu. Toca a bola. Chico, abre pra receber,
caralho. Que que ele tá fazendo, caralho? Que que ele... isso, vai sozinho
então, caralho. Vai. Vai. Isso. Tira o zagueiro, tira. Caralho. É. Ah. Gol!
Gol! Caralhoooooo!” Nogueira vai tirar Chico, um atacante, para colocar
Pereira, um zagueiro. Nogueira tem 63 anos, é casado, gosta de assistir filme
de faroeste, fala palavrão pra caralho. A massa disforme gosta de urrar que ele
é retranqueiro. Nogueira não está nem aí pra esses putos, caralho.
Moreira, de saco cheio. Não
aguenta mais falar e não ser ouvido. Trabalha há muitos anos com Nogueira. Acha
Nogueira um retranqueiro supersticioso e bunda mole. Torce pra um dia Nogueira
ser expulso, só pra ele mexer no time à vontade e ser demitido depois. Entrega
a papeleta para o quarto árbitro. “Um dia ainda fodo esse filho da puta”.
Moreira gosta de cinema francês, pinta nas horas vagas e estuda táticas de
futebol.
Zeca Diabo vem pra cima, depois de ter humilhado a besta do Toniquinho. Se entreolham Marcão e Julio. Marcão, zagueiro central. Julio, lateral. “Deixa que eu vou”, diz Julio. “Não, essa é minha”, diz Marcão. Vão os dois. Zeca Diabo passa no meio. “Por onde ele passou?”, pensa Julio. “Passou por onde ele?”, se pergunta Marcão. Julio já morou no interior de São Paulo, Bahia, Tocantins, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Caracas e em Bruxelas, na Bélgica. Rodando por diversos clubes de futebol. Pra se firmar, foi um custo. Marcão é prata-da-casa, a torcida não gosta dele. Marcão está puto, foi chamado de cabeça de bagre por um jornalista. Outro o chamou de “beque de fazenda”. Marcão está puto, Toniquinho fica se mandando pro ataque e a bomba estoura na mão dele. Marcão está puto, Julio é um bostinha, não sabe apoiar, não sabe marcar, não sabe fazer uma cobertura, e agora me atrapalhou aqui no lance, no mano a mano eu parava o filho da puta do Diabo. Diabo passa pelo goleiro, “outro bosta, também!”, faz o gol. Marcão ouve o urro histérico da massa disforme, olha feio para Julio. Julio ouve o som bestial, devolve o olhar duro para Marcão.
Puta que pariu, Diabo não! Puta
que pariu, saio ou fico? Se sair, ele me dribla. Se ficar, ele faz o gol. Puta
que pariu, zaga de merda. Puta que pariu, lá se vai o campeonato. Puta que
pariu, por que goleiro?, bem dizia meu pai. É agora, seja o que Deus quiser.
Minha Nossa Senhora, me proteja. É o Diabo. Ele vem e dá um corte, puta que
pariu. Foi pro saco. Ele e o gol. Ele e o gol. Erra, filho da puta. Erra, Nossa
Senhora. Não quero nem ver. Não quero nem ouvir. Ouço. O urro. Puta que pariu.
Zeca Diabo, herói. Pega a bola e
parte pra cima, fazer gracinha, o pau vai fechar, acaba o jogo, seremos
campeões. Outra vez Zeca Diabo, fazendo firula. Vem pra cima Toniquinho, Julio,
Marcão, Edmílson, Jamanta, Carlinhos. Correm pra apartar Luciano, Fabio
Henrique, Clóvis. Vem pra botar mais lenha Pereira, Clebão, Mique Diéguer. O
pau comendo, Nogueira gritando “caralho, tira o Diabo do bolo, caralho, tira o
Diabo do corpo!”. A massa urra de satisfação e se revolve nas arquibancadas, e
surgem paus, e surgem pedras, e surgem tacapes, clavas e sangue aparece entre o
colorido das faixas e bandeiras. Aparício no meio do bolo tentando apartar a
briga. Alguém passa a mão em sua bunda. Aparício transfigurado distribui cartão
vermelho. Vermelho tinge a roupa de um torcedor de 16 anos na arquibancada.
De repente o tempo fecha. Começa
a chover canivete. Facões caem do céu. Toniquinho agarra a peixeira e, de um só
golpe, a cabeça de Diabo rola do corpo. Diabo, a cabeça solta no chão, “viu seu
corpo sem ela pela primeira e última vez”. Toniquinho grita “bu!” e Diabo ri.
Julio apanha um facão, corta a cabeça de Marcão. O facão era meio cego, a
cabeça fica pendurada por um fio de pescoço. Marcão apanha o facão e corre
atrás de Julio, mas Clebão enfia uma espada em seu bucho. Nas arquibancadas, a
massa disforme urra de dor e êxtase. Nogueira manda chamar a polícia, caralho.
Chamar os bombeiros, caralho. Chamar reforço, caralho. Vou botar mais um
zagueiro, caralho. Chama o governador, caralho. Esse juiz é um viado, caralho.
Chama o ca... Uma faca aparece saindo do seu ventre e as costas ardem e
sangram. Olha pra trás e vê Moreira, rindo. Moreira, o atirador de palavras e
mestre em facas cruzadas. “Maldito, pederasta, covarde, imbecil, babaca,
vendido, pulha, cretino, estúpido, salafrário, cuzão, proxeneta, safado,
ladrão, farsante, macumbeiro, sanguessuga, canalha”.
Aparício distribuindo cartões
vermelhos. O que eles estão pensando?, ele pensa. Cambada de filhos da puta,
ele pensa. Cheguei em casa com as roupas rasgadas, chorando. Minha mãe me
bateu. Tinha vergonha de contar. Cresci com esse sofrimento dentro de mim. Me
achava um anormal. Não tive nunca amigos. Riam de mim na escola. Não conseguia
me aceitar. Não conseguia me assumir. Odeio futebol. Odeio minha repartição na
Sabesp. Odeio as pessoas. Se pudesse botava todo mundo pra fora. Se pudesse
botava tudo pra fora. Pega a cabeça do Diabo e põe no centro do campo, vou
reiniciar o jogo. Vou dizer pra todo mundo o que acho. Vou bater com a piroca
na cara desse monte de hipócritas. Foda-se o quadro da Fifa. Fodam-se os
quadros de água. O que eles estão pensando?
A cabeça foi parar lá onde estava
o goleiro. Puta que pariu, olha a cabeça do Diabo. Puta que pariu, ele está
rindo. Puta que pariu, minha Nossa Senhora. Puta que pariu, vou chutar essa
merda pra longe.
Toniquinho, um fantasma, apara a
cabeçorra no peito. Deixa rolar e sai jogando. Grita “bu!” e toca pra Julio.
Julio corre em câmera lenta, como se tivesse chumbo nos pés. É Marcão, agarrado
em suas pernas, a cabeça pendente pra trás. A massa disforme urra, Julio sangra
pelas narinas, rola a cabeça do Diabo para Jamanta, que toca pra Carlinhos.
Carlinhos devolve para Toniquinho, que chuta forte. Gol, a cabeça do Diabo
entra lá onde a coruja dorme. A massa disforme vibra, a massa disforme é uma
massa de sangue tingindo o cinzento. Seu urro é prolongado e só cessa quando o
estádio explode.
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* Rafa Gimenez é jornalista, ex-poeta e contista. Ama futebol, mas sempre foi um tremendo perna-de-pau. Escreve às quintas o "Resenhas inventadas", coluna de contos que tem o maravilhoso esporte bretão como tema central ou pano de fundo.