Resenha

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“Mano, desliga essa porra! Você
não sai mais dessa merda de feicebuqui...”
“Calma aí, bróder! Só vou mandar
aqui uma curtida na foto dessa gostosa aqui e... pronto! Fala, que que cê quer?
Tá na febre do jogo de amanhã, é isso?
“Pior que tô. Vamo desenrolar aí
uma ideia pra passar o tempo, que
tá foda. Não vou pegar no sono fácil hoje...”
“Ih, parça, relaxa... Amanhã meto
três na caixa, vamos sair com o título. Aquele zagueiro lá dos caras é um puta
pé-de-breque, no primeiro jogo ele não me achou no campo, ha ha ha!”
“Tomara, mano, tomara. Tô no
veneno, não vejo a hora de chegar o jogo...”
“Mas nem, relax, man. Ó só, vou
te mostrar o bute que comprei. Se liga só, olha que tênis top!”
“É bonito mesmo, parça! Vendi
muito tênis desse quando trampava de vendedor numa surfwear aí...”
“Cê trampava em loja de surf? Não
sabia...”
“Trampei um ano, um ano e pouco.
Trampo mala, mas tirava uma grana boa. Também, não é difícil ser vendedor,
basta ser criativo”.
“Criativo? Como assim?”
“Tipo assim, falava pros caras lá
que uma camiseta assim assada da marca tal tinha sido usada num show no Cabral
pelo MC Fulano, que tava bombadão. Associava os produtos a alguém que tava em
evidência e os otários compravam. Podia ser a camiseta mais feia, a bombeta
mais baianona... Usando as palavras certas, dizendo que um pica desses aí usou,
e sendo de marca, vende que nem água...”
“Saquei. Eu quando era moleque
também copiava o estilo dos jogadores que curtia. Sabe que uma vez, quando eu
era moleque, levei no barbeiro uma figurinha do Ronaldo – o que era goleiro do
Corinthians, saca? – e mandei ele fazer o corte de cabelo igual?, ha ha ha”.
“Pô, imita o corte do Ronaldo
agora. Cê vai ficar lindão com a cabeça e as sombrancelhas rapadas! Igual a
cabeça do meu pau! Ha ha ha!”
“Ô palhaço, vai se foder! Além do
mais, não é sombrancelha, é sobrancelha, ignorante!”
“Porra, tu é um cara sabido!”
“Eu leio um pouco, pra variar!
Mas continua contando aí, como era tua vida de vendedor?”
“Era isso aí. O que enchia o saco
era quando a gente tomava caroçada...”
“Caroçada? Que porra é essa?”
“Ah, não tem nos teus livros
isso? Vem cá que papai te instrui: caroçada é uma gíria de vendedor pra quando
vai um cliente na loja, te aluga por um tempão, te faz mostrar trocentas calças
e camisas das mais variadas marcas e tamanhos e, no fim, não leva porra
nenhuma!”
“Pô, isso deve ser foda...”
“Se é... Vender é uma profissão
engraçada. Na verdade, não é muito diferente do futebol. Num dia, você estoura
de vender, bate a cota do mês num dia, fica felizão pensando na comissão que
vai pingar no fim do mês. Aí, no dia seguinte, não vende nem um par de meia...
No fute a gente tem dia que estoura de fazer gol, que nem quando fiz 4 naquele
jogo contra o Ituano... Aí depois fica dois meses sem marcar...”
“Bela analogia...”
“Ana o quê?”
“Ha ha ha, deixa quieto, mano.
Mas, aí... Como foi que tu saiu da loja e virou jogador?”
“Eu sempre joguei bola, na
várzea, nos campinhos da quebrada, joguei futsal também... Mas não conseguia
entrar em time nenhum, daí fazia meus corres pra botar grana em casa. Tava
nessa loja aí há um ano, um ano e pouco, quando aconteceu um lance cabuloso.
Descobri que um vendedor, de conchavo com o gerente, tava desviando peças da
loja. Umas bermudas chinfreiras pra caralho, de surfista, importadas. Saca
aquelas bermudas que tu estica, estica, estica mais, e ela não rasga nem
fudendo? Aí tu joga água em cima dela e a água bate no tecido e escorre, ela
não penetra no pano. Impermeável, manja?”
“Sei. Os caras tavam desviando
essas bermas aí, é?”
“Pois é. Roubavam as peças na
caruda e revendiam no Brás. Eu acabei descobrindo o esquema e ameacei contar
pro supervisor. O cara era gente boa, não achava justo ele tomar esse preju.”
“E aí?”
“Aí o gerente armou pra mim,
meteu as bermudas na minha sacola da marmita, chamou o supervisor e armou o
fuá. O que mais me doeu é que o Santos – esse era o nome do supervisor – nem quis
ouvir meu lado, acreditou no gerente e me botou na rua, ainda ameaçou chamar
polícia e o cacete. Fiquei com aquela injustiça assim meio marcada em mim,
sabe? Sempre fui um fodido, parça, mas nunca roubei porra nenhuma na minha vida”.
“É foda. Daí de lá você foi pro
Juventus?”
“Não assim diretão, fiquei um
tempo fazendo peneira. Cada não que
eu levava numa peneira aumentava minha raiva. Via moleque apadrinhado entrando
nos times e eu não, isso aumentava minha raiva. Tinha raiva do gerente da
surfwear, raiva do meu padrasto que batia na minha mãe e minha mãe ainda dava
razão pro puto, raiva dos diretores viados de times de base que pediam pra
chupar o pau dos moleques que iam treinar lá... Só via absurdo, cara, era pobre
e pensava em ser rico pra tirar a forra. Até que consegui, né?”
“É, tu tirou a boa.”
“Tirei mesmo. Sabe qual foi a
primeira coisa que eu fiz quando assinei com time grande?”
“O quê?”
“Voltei na loja. Eu achava que o
gerente não taria mais lá, tinham se passado uns três anos. Meu olho brilhou
quando cheguei lá e vi que ele ainda tava lá! Mano... O puto veio todo humildão
tipo ‘Rafa, você aqui, não acredito!’ e pediu desculpas, e isso e aquilo, que
foram injustos comigo e outras conversinhas pra boi dormir. Quer dizer, ele
sabia que eu tinha estourado, né? Mudou da água pro vinho comigo, mas eu não
tava nem aí. Eu tava queimando por dentro, só pensava que tinha chegado a minha
hora de cagar na cabeça do filho da puta”.
“E o que você fez?”
“Comprei, de uma vez, uns 50
conto em produtos na loja dele. Comprei toda a coleção de camisetas, trocentos
pares de tênis, boné, relógio e o caralho. Passei a venda na boleta da única
vendedora que era maneira comigo quando eu tava lá, e que não ficou do lado do
gerente na época. Quer dizer, ela não teve coragem de peitar o cara, precisava
do trampo – tanto que ficou esse tempo todo lá – mas não me virou a cara. Nem
dirigi a palavra pro safado, vi que ele ficou todo sem graça, na frente dos
vendedores, clientes, da porra toda. A loja tava lotada, porque era época de
fim de ano e porque eu tava lá. Aí, antes de sair, peguei uma bermuda, daquela
que custava 5 conto, não rasgava, não molhava, não manchava... Tirei um
estilete do bolso e cortei aquela merda no meio, todo mundo olhando de olho
arregalado pra mim. Depois peguei um frasco com álcool, que eu levei no bolso,
o molhei os pedaços do pano, que, aliás, foi foda de rasgar, o troço era
resistente mesmo. Aí joguei no chão e taquei fogo, subiu uma fumaça fedida, o
sistema anti-incêndio da loja acionou, molhou a burguesada toda. Virei pra eles
e falei: “Não rasga, não molha... mas pega fogo! Ha ha ha! Se fodam aí, seus
otários!” Eles ficaram todos sem reação, eu saí dando risada com os 4 manos que
foram comigo, levando atrás de mim as sacolas com as compras...”
“Porra...”
“Depois de um tempo fiquei
sabendo que o gerente rodou, e andou meio fudidão, problema com droga e o
cacete. Bem feito, filho da puta tem mais é que se foder”.
Breve silêncio.
“Que foi, mano?”
“Você falou aí em droga, lembrei
que estamos perto do natal e lembrei de uma história cabulosa aí da minha
infância”.
“Se quiser dividir, tamo aí...”
“Agora pouco eu te sacaneei com o
lance lá do português, mas eu também não estudei muito não. Eu também não era
rico, talvez não fosse tão pobre quanto você, mas a gente passou dificuldade à
pampa. Meu pai, quando eu era moleque, foi embora de casa justamente numa
véspera de natal. Eu tinha uns 5 anos, acho. Minha mãe trabalhava de
costureira, numa confecção no Bom Retiro. Ela fazia questão que eu estudasse,
embora eu não gostasse. Guerreira pra caralho, nunca faltou comida em casa,
sabe? Aí passou uns 10 anos, por aí. Era outro natal. E não é que o filho da
puta do meu pai apareceu lá em casa?”
“Apareceu? Onde ele teve?”
“Apareceu em casa com uma mulher
e três moleques. E, na maior cara de pau, sem cerimônia nenhuma, disse pra
minha mãe: ‘Conceição, essa aqui é minha mulher, Regina, e esses são meus
filhos, fulano, cicrano e beltrano’, eu nem guardei o nome dos moleques.”
“Porra! Que loucura, cara? E tua
mãe?”
“Minha mãe convidou eles pra
entrar! Eu virei e disse ‘mãe, se esse desgraçado entrar aqui com esse bando de
sem vergonha, eu saio por essa porta e a senhora nunca mais me vê!’. Minha mãe
me pediu calma, disse que meu pai tinha direito a dar uma explicação. Eu achava
que ele não tinha direito a nada, mas fiquei morrendo de dó da minha velha.
Entramos todos e ele começou a contar a estória dele, que tinha ido pra Bahia
com essa mulher, que tinha se apaixonado por ela, mas que gostava muito da
minha mãe e não teve coragem de contar pra ela e magoá-la, eu ouvindo aquilo e
ficando com o mesmo ódio que você sentiu quando te tiraram de ladrão. Aí na
Bahia ganhou um bom dinheiro com uns negócios que fez por lá, ele não disse que
tipo de negócios, mas acho que era alguma coisa relacionada a contravenção,
porque ele tava com um nextel que não parava de chamar, e toda hora saía pra
atender. Numa dessas saídas, eu chamei minha mãe de lado, apesar de tudo fiquei
com dó dos moleques que não tinham nada a ver com aquela história, e disse ‘até
quando vai essa palhaçada?’ e minha mãe parecia que estava em estado de choque,
não falava nada, vi que ela queria chorar mas tava se segurando. Então ele
voltou, e minha mãe disse ‘vamos comer’. Eu putaço da cara, todo mundo sentado
à mesa se servindo de peru, como se fossemos uma grande família. Minha mãe
então, lá pelas tantas, virou pra mim e falou: ‘Junior, vai lá buscar aquele
vinho que teu pai gosta, tem uma garrafa no armário em cima da pia’. Eu já ia
responder que não ia servir porra de vinho nenhum, que aliás tava na hora de
certas pessoas se tocarem e darem linha no pipa, quando meu pai falou ‘não,
Conceição. Eu parei de beber’. Ficou um breve silêncio, até que minha mãe
finalmente explodiu. ‘Parou de beber, é, cabra? Filho da puta, cachorro,
canalha, desgraçado, lazarento, infeliz, corno, safado, viado, entulho, ponha-se
daqui pra fora, cretino!’. Ele saiu, os meninos atrás dele, chorando, a mulher
envergonhada. Só então eu entendi o circo que foi armado ali. Foi a última vez
que vi meu pai. Depois que minha mãe morreu e eu já era jogador, ele tentou
contato, mas eu não quis saber. Só sei que passei a odiar os natais. Ceio com a
família, dou presentes pros meus filhos, mas sempre tenho a lembrança daquela
noite, do meu pai tirando uma pacoteira de dinheiro do bolso, antes daquele
maldito jantar, e entregando uma parte pra minha mãe, minha mãe recusando, daí
ele dividindo o dinheiro em partes iguais e distribuindo pros filhos, foi dar a
minha parte, eu ia aceitar – aquilo era o mínimo, ele me devia muito mais – mas
minha mãe, do alto da dignidade dela, dizendo ‘não precisamos disso’ e eu
achando ela uma idiota, até que ela explodiu e eu enfim entendi tudo”.
“Foda”.
Silêncio prolongado.
“Mano, me bateu um sono. Jogo de
amanhã vai ser pegado! Tá mais de boa agora?”
“Tô, parça. Valeu pela resenha.
Amanhã é porrada neles!”
“É nóis, parça! Boa noite!”
“Boa noite!”
Silêncio definitivo.
* Rafa Gimenez é jornalista, ex-poeta e contista. Ama futebol, mas é um tremendo perna-de-pau. Escreve às quintas o "Resenhas inventadas", coluna de contos que tem o maravilhoso esporte bretão como tema central ou pano de fundo. Agradece a você que esteve aqui em 2013 e espera que apareça no ano que vem!