Amor



Nunca me esqueço da primeira vez em que a vi. Era um jogo sem grande importância, eu já era rodado, ela estava estreando em um jogo profissional da primeira divisão. Primeira bola, o volante dominou na cabeça da área, tirou a marcação e lançou de três dedos. Eu saí de trás da linha de meio campo e ia pegar a bola sozinho, limpinha, só o goleiro adversário e eu. Ela levantou a bandeira, eu fiquei enlouquecido, corri até a lateral e nos encaramos. Ela me olhou, altiva, sabia que tinha feito cagada, mas não perdeu a autoridade. Segundos depois o árbitro chegou e me deu amarelo, mas o brilho daqueles olhos verdes ficou marcado em mim. Fiquei dias sem dormir, pensando nela. Os olhos, os cabelos pretos presos numa trança, as pernas colossais, bronzeadas e opressoras. Os companheiros não entendiam minha prostração. Menos ainda compreendiam como eu, artilheiro do Brasil, começara a perder gols improváveis. Recebia bolas açucaradas e perdia os gols por pura displicência. Fui mandado para o psicólogo do clube e abri meu coração: estava apaixonado e era um amor impossível, eu sabia. “Se o sentimento é assim tão intenso, te aconselho a lutar por ele”. Conselho de foro íntimo, não profissional, eu sabia.

Voltei a encontrá-la algum tempo depois, num evento da federação. Queria me aproximar, mas havia jornalistas por toda parte, abutres esperando pela carne de um animal que lhe caísse morto pela frente. Cumprimentei-a rapidamente e, com a mão cobrindo os lábios – os abutres haviam se especializado em leitura labial – disse a ela: “Eu te amo”. Ela hesitou por alguns instantes, mas cobriu também a boca com as mãos e respondeu: “Te amo também, só penso em você, desde aquele jogo”. “Vamos sair daqui? Meu carro está no estacionamento, desça daqui meia hora que eu te espero lá”. No meu carro, na escuridão dos faróis apagados, esperei pela eternidade. Meu coração palpitava não como em final de campeonato, pois o futebol para mim era meio de vida, prazer só fora na infância dos campos de lama. Eu era o artilheiro de gelo, o matador implacável, mas ali, só naquela imensidão silenciosa, estava vulnerável como qualquer criança cativa no amor. Depois de certo tempo – minutos, horas, dias, eras? – ela apareceu. Pisquei os faróis e saí devagar. Em seu carro, ela me seguia. Não vimos abutres no estacionamento, o que tranquilizou meu coração. No motel, na penumbra do quarto, pedi a ela que nos tocássemos com os olhos fechados, numa experiência sensorial transcendente e prazerosa. Senti, com as mãos, cada músculo de seu corpo: as coxas, o ventre, os glúteos. Um sentimento de euforia me dominava e, quando abrimos os olhos foi que me dei conta de que ela era mais bonita do que eu tinha percebido e sonhado. Fomos para a cama e, finalmente, deixamos aquele mundo podre para trás. Eu era feliz, mas estava dividido: sabia que meu sofrimento começaria logo.

“Um namoro secreto?”

“Sim, coração. Se os abutres descobrem que estamos juntos, a merda será completa. Qualquer jogo meu em que te escalarem pra apitar vai ter burburinho. Se eu pudesse, eu largava essa merda e nós iríamos juntos pra qualquer lugar, viver de amor, cinema e livros. Você não se sente um peixe fora d’água?”

“Eu gosto do que faço. Ano que vem me formo em educação física, acho que vou abrir uma rede de academias. Minha profissão é ainda mais estável que a sua. Daqui a pouco me chutam”.

Eu sabia que era verdade. Mulheres são muito malvistas no futebol. As bonitas como ela, então, tem ainda menos credibilidade. Mas eu sabia, a despeito de estar apaixonado, que ela era boa no que fazia.

Namoramos por 3 meses, 2 semanas e 2 dias. Tudo acabou no domingo em que se iria jogar a final do campeonato, dois times grandes na disputa, meu time jogava por um empate. Tremi quando saiu a escala da arbitragem: ela iria bandeirar a decisão, uma espécie de prêmio por ter sido a auxiliar mais regular do campeonato. No mesmo jornal em que se noticiava a definição do quarteto de arbitragem, uma nota maldosa, no pé da página, fez meu mundo desabar: “Jogador do Corinthians é visto com bandeirinha em restaurante, em clima de romance”. Na noite anterior, cansado da nossa clandestinidade descabida, levei-a para jantar no restaurante de um grande amigo, após pedir para o mesmo que restringisse a clientela daquela noite somente a nós dois. Ela ainda me disse que seria perigoso, mas eu respondi “Foda-se, que vá tudo às favas! Eu te amo e quero gritar pra todo mundo ouvir! E tem mais: estou vendido pra um time da Itália, jogo amanhã e depois não precisamos mais esconder nada. Te levo comigo, você vem?”. Ela disse que sim, nos beijamos. No restaurante vazio bebemos vinho e não vimos quando um dos garçons, num canto do local, nos fotografou com o celular. A foto, que ele vendeu pros abutres, deu um alvoroço do caralho. Queriam tirar meu amor da final, mas não havia tempo hábil.

Entrei em campo nervoso, sofria mesmo. Não pela final em si, que para mim era só mais uma. Tinha treinado, estava tinindo, sabia que em condições normais faria um ou dois gols, administraríamos o resultado. Olhei para ela, ela parecia tão nervosa e infeliz quanto eu. Toda a imprensa colocou o jogo sob suspeição e eu pensei que o presidente da federação era um filho da puta, porque tinha mesmo era que ter tirado ela daquele jogo, seria melhor. Então me lembrei de uma coisa que ela me disse, num dos nossos encontros: 

“O Magalhães, da federação, já tentou me comer. Prometeu até que me promoveria a quadro Fifa se eu desse pra ele. Um sujeito asqueroso. Foi difícil resistir às investidas, sabia que ele podia acabar com a minha carreira. Mas eu amo você, só você”. 

Entendi então que meu time teria que jogar muita bola pra ganhar aquela final, e que quando o juiz fizesse o trabalho, sobraria pra ela, apenas pra ela. Um pênalti não dado, que o juiz não viu porque estava mal posicionado, mas que a bandeirinha viu, por que não avisou o árbitro? Um impedimento mal dado, uma expulsão descabida por uma agressão que só a bandeira viu, o juiz contando o acontecido pra imprensa. O Magalhães urdiu tudo muito bem. Estávamos fodidos, os abutres todos sabotando nosso amor impossível. O jogo começou e se arrastou, os dois times marcando muito. Ouvia os gritos do treinador: “Acorda, Paulo, entra no jogo, caralho!”. Perdi uma bola no meio, eles saíram no contra-ataque, nossa zaga foi pega desarrumada e, num rebote do goleiro, o atacante deles empurrou pras redes. Ouvia o técnico me xingando, mas meus olhos estavam na direção dela, que me olhava de volta. Queria que aquilo acabasse logo, eu não entendia o que estava acontecendo. Porra, quando foi que tudo o mais perdeu a importância? O jogo foi para o segundo tempo e eu decidi que era hora de resolver. Criei oportunidades, fui pra cima dos zagueiros, dei duas ou três assistências para os companheiros, mas o gol não saía. Até que, aos 43 minutos, aconteceu: o lateral roubou uma bola no campo de defesa, tocou no primeiro volante; o primeiro volante conduziu pelo meio e deixou com o meia. O meia prendeu, veio a marcação dupla, ele girou e lançou pra mim. Eu estava impedido. Muito impedido. Dois metros, no mínimo. Só percebi quando estava com a bola dominada, cara a cara com o goleiro, e vi os adversários todos parados, com o braço levantado, gritando contra ela. Não tinha muito tempo para pensar. Meu impulso era fintar o goleiro, rolar pro gol, ser campeão, ir embora pra Itália como herói. Mas eu estava amando, e sabia que amar é sofrer. Dei um bico, mandei a bola pra casa do caralho. Era a carreira dela ou a minha, optei pela dela. Eu morreria por ela.

Saí escorraçado, o presidente do clube deu uma declaração de que, se pudesse, cancelaria a transação da minha venda, porque eu tinha mais era que me foder até o time ser campeão de novo. Que eu era um moleque irresponsável e mau caráter. Os abutres ligaram os fatos, falou-se em perda deliberada do gol para não prejudicar a bandeirinha. Ela não foi comigo, pediu para eu ir na frente para a Itália, não podia se desligar assim da federação, precisava de tempo. Perguntei se ela deixara de dar o impedimento de propósito, ela disse que não viu mesmo, mas falou com pouca convicção. Era impossível ela não ter visto que eu estava à frente, eu tinha certeza. Retribuí com amor um puro ato de amor.

Na Itália, esperei por ela. Como ela não chegasse, mandava emails, mensagens, telefonava, pedia ao meu empresário que todos os dias mandasse flores à casa dela. Um dia, tive o choque: chegou-me o jornal, anunciando que ela estava namorando o Magalhães, presidente da federação. E que tinha se aposentado da carreira de arbitragem, ia comentar na TV. Aquilo foi o fim. O voo que peguei, imediatamente, para o Brasil foi o pior da minha vida. Bêbado, gritava nas turbulências, chamando a atenção dos passageiros e comissários. Meu empresário, que não conseguiu me conter e me dissuadir de viajar e abandonar meu time às vésperas de um jogo importante, pediu-me calma, “olha o escândalo! Toma esse tranquilizante!”. Amar é sofrer. Fiquei duas semanas num quarto de hotel tentando contato com ela e fugindo das ligações dos diretores do meu time, putos comigo. A expressão do meu empresário era de desolação. “Foda-se, vou voltar pra Itália e conversar com os caras lá, ganhar tempo”. Ele sabia que meu trágico destino era inevitável. Cansado de ser ignorado por ela, fui até o programa esportivo em que ela atuava como comentarista, invadi o estúdio. Seguranças tentaram me conter, ela interviu, me arrastou pra um camarim.

“Vagabunda!”

“Calma, eu posso explicar!”

“Você acabou com a minha vida!”

“O Magalhães... Ele pode fazer muito por nós. Você vai se dar bem na Itália, o Magalhães vai ganhar a eleição pra CBF, ele pode te levar pra seleção...”

“Eu não preciso de padrinho, vadia!”


Nossa conversa foi nesse diapasão, até que - não sei o que me deu – me joguei aos pés dela, dizendo: eu te amo, eu te amo, você não pode fazer isso comigo. Ela disse: desculpe. Eu não podia ir com você, nosso amor é impossível, você tinha razão, eu não sou digna, me desculpe. 

Nosso dramalhão terminou assim, voltei pra Itália. Meu time tinha rescindido meu contrato, meu empresário me deu um pé na bunda. Bebi pra cacete e chorei. Minha vida tinha acabado. Amar é sofrer. 

* Rafa Gimenez é jornalista, ex-poeta e contista. Ama futebol, mas é um tremendo perna-de-pau. Escreve às quintas o "Resenhas inventadas", coluna de contos que tem o maravilhoso esporte bretão como tema central ou pano de fundo. 


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