O beijo no gramado

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**Conto livremente inspirado na obra de Nelson Rodrigues.
Fluminense x Bangu, Campeonato
Carioca. O jogo está empatado em 0x0.
Narrador: “Vai Arandir outra vez pela direita. O Fluminense não tá insistindo
muito nesse jogo pelas pontas não, Macedo? Espera, depois desse ataque você
comenta. Arandir passou pelo primeiro. Fintou o segundo. Lindo corte no
terceiro, rolou pra trás. Vem Rogério, dominou, a marcação em cima... Ih,
rapaz! Que pancada! Olha... Ele pegou pra machucar, hein?”
Macedo: “Entrada desleal, João Antônio! Olha, pela cara do Rogério, acho que
não vai dar pra ele não...”
Narrador: “Jogadores do Fluminense vão pra cima do jogador do Bangu! Agora virou
tumulto. Olha o bolinho ali, estão pedindo a expulsão do Rodrigues! O Arandir
tá conversando ali com o Rogério, pedindo, desesperado, a entrada da maca...
Chora muito o Rogério, Arandir ali com ele. [narrador cala-se e faz
silêncio enquanto se desenrola a seguinte cena: Arandir aproxima-se do rosto de
Rogério, que está crispado de dor e chora muito. Rogério pede algo a Arandir,
que titubeia por um instante. Arandir rapidamente, enquanto a confusão ocorre
próxima dali, dá um beijo breve, porém firme, nos lábios de Rogério. A maca
entra e retira Rogério. Narrador retoma a irradiação da partida, sem tocar no
assunto do beijo óbvio e explícito, que as câmeras pegaram. É nítido o
constrangimento do narrador João Antônio e do comentarista Macedo]. É... A maca
retira o Rogério, e... O árbitro vai expulsar o Rodrigo... Perdão, o Rodrigues.
Vai expulsar o Rodrigues... Er... É justa a expulsão, Macedo?”
***
Dia seguinte. Programa televisivo
Bola pro mato, exibido diariamente e
ao vivo na hora do almoço. Sensacionalista e de grande audiência. No estúdio,
estão: Júnior, ex-jogador e apresentador do programa (polêmico, desbocado, tido
por muitos como o maior boçal da tevê); Amado Ribeiro, repórter de campo,
responsável por quase todos os “furos” do programa (odiado pelos dirigentes
esportivos, contratado a peso de ouro pela direção da emissora); Carlinhos,
jogador do Fluminense; Rodrigues, zagueiro do Bangu; Horácio Gasparini,
narrador e comentarista veterano (colegas caçoam dele pelas costas);
Almeidinha, treinador desempregado.
[Entra vinheta]
Júnior: “Bola pro mato, que o
jogo é de campeonato! Estamos chegando com o apoio da cerveja Mundial, aquela
que você bebe e, pau! Também das camisinhas “Umazinha”: e você, já deu umazinha
hoje? E do Banco Amigo: esse Amigo não some quando você precisa! Boa tarde,
pessoal! Boa tarde Amado Ribeiro, o repórter-bomba! Boa tarde, Almeidinha! Hoje
temos dois convidados aqui pra falar do jogo de ontem, o Carlinhos do Fluzão e
o Rodrigues... [Abre os braços, num amplo gesto teatral] Pô, que feio,
Rodrigues! Que feio, Rodrigues! Mas já já a gente fala disso... Ah, ia
esquecendo, o Gasparini também tá aqui! [Jocoso] E aí Gasparini, tomou seu
remedinho?
Gasparini [pensa]: “Tomei, tua
mãe me levou o remédio, o copo com água e aquela buceta peluda dela. Gasparini
[responde]: “Tudo bem, Junior? Rodada quente nesse fim de semana!”
Júnior: “Calma, Gasparini, deixa
eu apresentar os convidados! Primeiro o Amado. E aí, Amado, tudo bem?”
Amado Ribeiro: “Boa tarde, Júnior.
Infelizmente vamos começar aqui com uma má notícia para a torcida do Flu. O
Rogério fez uma ressonância logo cedo e foi constatada uma ruptura total do
ligamento posterior da coxa. [Sorrindo, irônico] Para tristeza do colega de
time dele, o Arandir, ele está fora do Carioca e, quiçá, fora até o resto do
ano. Lamentável.”
Júnior: “É, é muito lamentável.
Pô, Rodrigues! Pooooooooô, Rodrigues!”
Rodrigues [sem graça]: “Pô,
Júnior, queria pedir desculpas aqui publicamente pro Rogério. Eu não peguei pra
machucar, foi um acidente. Ele é colega de profissão, tô me sentindo mal por
ter tirado ele do campeonato. A mulher dele, os filhos, se estiverem
assistindo, minhas sinceras desculpas...”
Júnior: “Mulher, filhos, o
Arandir também! Tem que pedir desculpas pro Arandir!” [entra sonora da música
“Beijinho doce”, enquanto Júnior, estimulado pelo ponto eletrônico, segue
tripudiando]. E a bitoquinha, hein? Não, a lesão do rapaz é um assunto sério,
eu sei, longe de mim rir da desgraça alheia, mas... Vamos falar a verdade! O
que foi aquela bitoquinha? Rodrigues, você que tava ali do lado do lance, o que
achou?”
Rodrigues: “Ah Júnior, eu não sei
nada. Eu fui lá tentar ajudar o Rogério, mas aí veio o time todo pra cima de
mim, aquele tumulto... “
Amado Ribeiro [interrompendo]:
“Ainda bem que você deixou o Arandir acudir, né? Senão ia sobrar beijinho pra
você...”
Rodrigues, sem graça,
desconversa. O programa segue. A grave lesão de Rogério fica em segundo plano.
O beijo é o assunto principal. Piadas aludindo a ele são feitas incansavelmente,
até quando o assunto já mudou para os demais jogos da rodada. Termina o
programa, sobem créditos.
Em off, Júnior, para Amado:
“Caralho. Batemos em segundo hoje na audiência. Essa história do beijo rendeu”.
Amado Ribeiro: “Eu aposto contigo
que amanhã a gente bate em primeiro”.
Júnior: “Bater a ‘poderosa’? Nem
se tiver jogador transando em campo”.
Amado Ribeiro: “Se precisar, faço
transar e ainda pago o lubrificante. Aguarde amanhã pra tu ver”.
***
Tarde do mesmo dia. Mansão da
família Alcântara. Selminha conversa com seu pai, Dr. Aprígio. Ele é advogado
bem-sucedido, ex-presidente do Tribunal de Contas e presidente do Fluminense.
Tem voz de barítono do Municipal.
Dr. Aprígio: “Um absurdo!
Absurdo! Viu os jornais hoje?”
Selminha [contemplando as
próprias unhas]: “Falei com o Arandir, papai. Isso aí é veneno desse
zé-povinho. O menino estava sentindo dor, pediu um beijo, ele deu.”
Dr. Aprígio: “E você acha normal
essa viadagem? Jogador, no meio da partida, na frente de 60 mil pessoas no
Maracanã, não sei quantos milhões no Brasil todo vendo pela tevê, cara pega,
agacha e me dá um beijo na boca de outro homem! Na boca!”
Selminha [aborrecida]: “Papai,
não sei sobre o cara que pediu, mas meu marido é homem! Ele é muito homem!
Desde que a gente casou, não se passou uma noite sem que ele me procurasse! E
já que o senhor tocou nesse assunto tão desagradável, vai ouvir também: com
ele, é a noite toda, todinha! Tem dias que eu fico no bagaço!”
Dr. Aprígio [explodindo]: “Chega!
Chega, porra! O que eu quero saber é por que esse filho da puta expôs ao
ridículo você, eu, o clube! Sabe quantos telefonemas eu recebi hoje? Eu não
tive sossego desde manhã! Aliás, desde ontem que não falam de outro assunto, é
a porra do beijo!”
Selminha boceja. Apanha uma
revista, abre-a.
Dr. Aprígio [arrancando a revista
das mãos da filha]: “Eu disse que não queria você metida com boleiro, não
disse? Essa raça não presta. Ainda vai e me casa com esse infeliz. Espero,
minha filha, que você não descubra que o negócio dele é agasalhar!”
Selminha se levanta e vai embora,
encerrando o assunto.
***
Na terça pela manhã, não houve
treino. À tarde, um recreativo. Arandir percebeu risinhos incontidos dos
companheiros. No bobinho, ficou no meio da roda, e então riram desbragadamente.
Pacato por natureza, ele teve um raro momento de descontrole. Partiu pra cima
de um companheiro, a turma do deixa-disso separou. O outro, chamado Joãozinho,
inflado de ódio, disse: “Vai, boiola! Namoradinho do Rogério!”
Arandir [contido]: “O quê? Repete
se tu for homem!”
Joãozinho: “Boiola mesmo! No
programa do Júnior hoje falaram do teu caso com o Rogério! Amado Ribeiro deu em
primeira mão!”
Transfigurado Arandir deixou o
campo de treino. Foi direto falar com o assessor de imprensa. Este o
tranquilizou: “Eu vi o programa. Não se preocupe, nós vamos processar. O
covarde disse que tem uma fonte, que deu pra ele que tu e o Rogério tem um
caso, que por causa desse caso você passou aquela fase de dez jogos sem marcar.
É foda, esse “a prima da cunhada do vizinho disse pra minha fonte” que ameniza
um pouco, o cara não cravou, só ‘insinuou’. Mas dá processo. Fica tranquilo, já
falei com o jurídico do clube. Vamos fazer esse cara se retratar”.
Arandir: “Quero matar esse filho
da puta! Oliveira, eu juro! Foi um beijo inocente. O Rogério pediu. Ele é meu
irmão, pediu, e eu tive pena. Eu sou homem. Sou homem, porra!”
Oliveira: “Calma, hombre! Pra quê
ficar nessa pilha? Amanhã todo mundo esquece isso”.
Arandir: “Joãozinho é um filho da
puta. O puto nunca gostou de mim, nunca. Ganha metade do que eu ganho, tem
ciúmes porque sou genro do presidente do clube”.
Oliveira: “Arandir, esquece isso.
Tive uma ideia. Vamo dar um rolê depois do treino? Tenho um chegado que é dono
de uma casa ali na Barra. Você vai, relaxa, alivia o stress. Amanhã o Fragoso
conversa com o Joãozinho, multa vocês dois e o assunto se encerra”.
Arandir [mais calmo]: “Tá certo.
Talvez seja melhor mesmo”.
No
puteiro, Arandir é paparicado pelo assessor de imprensa do clube, por seu
empresário e por várias mulheres que, ouriçadas pela presença de um jogador
famoso, se alvoroçam em torno dele. Mas, cioso de querer comer alguma delas,
pra provar a si mesmo que é macho, não consegue ter uma ereção. O tempo passa, as
mulheres são lindas e se insinuam para ele, mas nada. Por fim, escolhe uma
delas, vão para o quarto. Não obstante
todo o esforço, malogra. Nunca havia broxado antes. Sente-se infeliz. A
insinuação de Amado Ribeiro, o deboche de Joãozinho, os risos dos companheiros,
tudo vem à sua mente e lhe fere no íntimo. “Vamos embora que amanhã tem treino
cedo”, diz para Oliveira.
***
As coisas se complicam para
Arandir. O time, sem seu melhor meio-campista, o lesionado Rogério, sente
dificuldades imensas para criar jogadas e levar perigo ao gol adversário. Já no
jogo seguinte ao do beijo, o time não consegue vencer o Madureira, e Arandir
perde um gol cara a cara com o arqueiro rival. No outro jogo, clássico contra o
Vasco, as coisas pioram: Arandir erra tudo o que tenta. Não acerta passes,
tropeça na bola, perde todas as divididas para os zagueiros adversários. A
própria torcida não perdoa e começa a puxar corinhos alusivos ao famigerado
beijo. Arandir não entende como um simples beijo pode provocar tanto desamor e
uma celeuma tão odiosa. Pensava no companheiro machucado. No momento daquele
lance, sentiu a dor do outro na própria pele: ele próprio já tivera uma lesão
grave, que quase lhe abreviara a carreira. O pedido soou-lhe estranho, mas a
maldade dificilmente lhe tingia o coração. Um beijo bobo, simbólico, que não
arranca pedaço. Rogério seria homossexual? Não sabia. O outro era casado, tinha
três filhos. Se fosse, e daí? Nunca lhe confidenciara nada, nunca lhe fizera
declarações, nunca lhe traíra a amizade. Só pediu um beijo. Um beijo dado ali,
na hora. Um beijo inadmissível para todos, menos para a parte concedente.
***
A bomba caiu-lhe sobre o colo em
forma de nota de jornal. Assinada pelo jornalista Amado Ribeiro, em sua coluna
“A bola como ela é...”, na seção de esportes de um dos jornais mais lidos do
Rio de Janeiro, tinha tom sórdido e trazia acusações inacreditáveis. O repórter
conversara com a mulher de Rogério, mãe dos filhos do jogador. Com todas as
letras, ela declarou que estava se separando porque descobriu que o marido era
homossexual. Se contivera durante muito tempo, para evitar escândalo e para não
acabar com a carreira do parceiro, mas com o assunto vindo à tona por causa do
beijo, não havia mais porque se calar. Ela, uma mulher honesta, aguentara as
piores humilhações. Descobrira o caso entre Rogério e o colega de time
(Arandir, cujo nome a própria entrevistada não gostava de pronunciar) quando
chegou em casa e flagrou os dois tomando banho juntos em sua suíte. Queria
botar a boca no trombone, mas o marido implorou por seu silêncio e, depois,
ameaçou-a. Passaram a viver em separação de corpos, porque ela contraíra nojo
em relação a qualquer tipo de contato com o homem com quem vivia. “E Arandir e
Rogério mantiveram o caso?”, perguntou Amado. “Sim, sei que se encontram até
hoje depois de treinos e jogos ”, respondeu a mulher. “Felizmente, não mais na
minha cama”, completou. A última frase publicada na coluna de Ribeiro
produziria na vida de Arandir os efeitos de uma bomba atômica. A entrevistada declarara
que, na véspera de um importante jogo do
Fluminense – do qual o time sairia derrotado – os amantes promoveram uma suruba
num apartamento alugado, da qual participaram apenas homens.
***
[Entra vinheta]
Júnior: “Bola pro mato, que o
jogo é de campeonato! Estamos chegando com oferecimento de camisinhas Umazinha
– e você, já deu umazinha hoje? -, também com oferecimento da cerveja Mundial,
a cerveja que você bebe e pau!, e ainda do Banco Amigo, aquele que é amigo
mesmo, não é como a mulher do Rogério. Hoje um programa quente! O Arandir e o
Fluminense pediram direito de resposta pra se defender das acusações de
viadagem... Sim, viadagem! Comigo não tem essa viadagem de homossexual, viado é
viado mesmo e pronto, não gostou, me processa! Mas como eu dizia, tá aqui o Arandir,
esse craque do Fluminense, e ele vai nos dizer o que tem de verdade nessa
história aí que o Amado trouxe na coluna dele no jornal. Pode falar, Arandir!”
Arandir: “Boa tarde, Júnior. Boa
tarde, Gasparini. Boa tarde, professor Almeidinha, que foi meu treinador no América,
a quem devo muito da minha carreira”.
Júnior [venenoso]: “Não vai dar
boa tarde pro Amado?”
Arandir: “Não. Com esse canalha
eu só vou falar na frente do juiz. Quero saber quanto ele deu pra mulher do
Rogério pra ela falar aquele monte de mentiras no jornal. Não deve ter sido
pouco. Afinal, de todas as mentiras sobre as quais ele construiu a ‘carreira’
dele, essa deve ter sido a mais podre”.
Amado Ribeiro: “Não vou admitir
esse tipo de acusação! Meu trabalho é sério! Você deve explicações à torcida do
Fluminense!”
Arandir: “Canalha!”
Amado Ribeiro: “Canalha é você!
Antiprofissional é você! Júnior, eu disse isso aqui antes e vou repetir, na
presença do Arandir: eu não sou fiscal de brioco de ninguém! Cada um que tenha
sua orientação sexual e problema é de cada um. Mas, como a entrevista da mulher
do Rogério deixou bem claro, e como todo mundo viu semana passada, porque
aconteceu à luz do sol, o Sr. Arandir e o Sr. Rogério deixaram os seus
sentimentos, os seus dilemas afetivos, passarem à frente do interesse
profissional e desportivo. O clube vive uma crise sem precedentes, vai mal no
campeonato, não ganha de ninguém e o elenco está rachado. A autoestima do
torcedor tá lá no buraco. E o Seu Arandir aqui não assume as suas
responsabilidades!”
Arandir: “Tudo o que foi dito e o
que foi escrito vai ter que ser provado. Vocês estão destruindo a vida de dois
profissionais pra ter audiência, isso é uma falta de respeito!”
Júnior: “Calma, Arandir! Também
não é assim! Meu programa é sério, e vocês estão baixando o nível, falando
palavrão pra caramba. Tem criança assistindo nesse horário!”
Gasparini [pensa]: “Mas que filho
da puta, que filho de uma mula manca, só fala de putaria nessa merda de
programa e agora quer se passar como moralista. O que eu tô fazendo aqui? Eu
devo ser um leproso, ter quase 80 anos e trabalhar numa emissora de bosta
dessa, ao invés de estar na ‘poderosa’ ou na tevê fechada. Jesus, eu não mereço
isso”. Gasparini [fala]: “Senhores, calma! Os ânimos estão muito exaltados.
Vamos procurar esclarecer os fatos para os nossos telespectadores, o que há de
verdade e o que há de mentira em tudo o que foi dito, e...”
Júnior [interrompendo]:
“Gasparini, desculpe, mas vou ter que chamar o break agora. Na volta, o Arandir
vai explicar como aconteceu a história do beijo, que começou todo esse rolo, já
voltamos”.
***
Arandir: “O que que há, Selminha?
Você tá muito esquisita”.
Selminha: “Não tenho nada,
Arandir. Me deixa”.
Arandir: “Eu não quis bater no
filho da puta do jornalista. Mas ele me chamou de viado em rede nacional. Você
queria o quê? Não tenho sangue de barata...”
Selminha: “Eu não estou nem aí
pra esse jornalista, nem pro vexame que você deu na frente do país todo. Eu
quero saber é a verdade”.
Arandir: “Que verdade?”
Selminha: “Você e o Rogério.
Vocês tem mesmo um caso?”
Arandir [contrariado]: “Aaaaaah,
Selma... Não é possível. Já conversamos sobre isso! Você não pode dar ouvidos
ao que essa gente diz”.
Selminha: “Arandir, me diz a
verdade. Se você for gay mesmo, eu vou te entender”.
Arandir [aproximando-se,
afetuosamente]: “Deixa de bobagem, coração. Vem aqui”
Selminha [esquivando-se]: “Não!
Me larga!”
Arandir: “O que é isso? Ficou
maluca?”
Selminha [numa confissão
desesperada]: “Não quero que você me toque! Tenho nojo! Nojo!”
Naquela noite, depois de chorar
muito, Selminha caiu no sono e teve pesadelos exasperantes, dos quais se
lembraria ao longo do dia. Arandir não conseguiu pregar os olhos. Decidiu falar
com o sogro, um homem ponderado de quem sempre colhera bons conselhos. Dr.
Aprígio saberia como resolver aquela situação. Ao chegar ao clube, no dia
seguinte, o sogro já havia se antecipado a ele e tomado suas providências.
***
Arandir está na sala da comissão
técnica, conversando com o treinador Noronha. Noronha, com seus 60 anos, ventre
amplo, é do tipo pragmático e justo.
Noronha: “Arandir, entenda. Eu
conto com você nesse time. Você sempre foi meu artilheiro. Só que você tá mal.
Essa estória toda tá afetando dentro de campo.
Arandir: “Seu Noronha, são boatos
esses...”
Noronha: “Eu sei. Sei que é tudo
mentira dessa mídia podre. Só que, porra! Como é que você me mete a porrada num
repórter na televisão? Você perdeu o juízo?
Arandir: “Foi uma
desinteligência. O puto me provocou. Acho até que ele queria que eu perdesse a
linha”.
Noronha: “Você tá mal
tecnicamente, e isso é reflexo psicológico, não tenho dúvida. É mídia em cima,
é torcida pegando no pé, o diabo. Vou ter que te afastar”.
Noronha contemplou com piedade a
cara desolada de seu comandado. Procurou amenizar o desconforto:
Noronha: “É por um tempo. Por
pouco tempo. A gente inventa uma lesão qualquer, você fica treinando em
separado. Daqui a pouco te reintegro”. [Cansado de mentir, abriu o jogo,
afinal] “É ordem do presidente. Ordem do teu sogro. Eu fui contra, mas o homem
mandou. Fala com ele”.
***
Dr. Aprígio não estava no clube.
Arandir, que já pretendia falar com ele sobre os problemas com Selminha, foi
procurá-lo em sua casa. O sogro o recebeu no escritório. Poderiam conversar
mais à vontade.
Dr. Aprígio: “Arandir, escuta.
Acho melhor mesmo te afastar por um tempo. A pressão em cima do time está muito
grande, e enquanto você estiver nos holofotes nós não vamos ter paz”.
Arandir: “Não é justo, Dr.
Aprígio. Eu não fiz nada. Estão me perseguindo por causa de uma bobagem. Eu não
fiz nada”.
Dr. Aprígio saiu de trás da mesa
e caminhou em direção ao genro, sentado à sua frente. Puxou a cadeira e
sentou-se frente a frente com ele. Em tom afável, perguntou: “E o beijo? Por
que você beijou aquele rapaz? São mentiras todas essas coisas que estão
dizendo?”
Arandir quis simular, diante do
sogro, uma indignação que já não sentia quando alguém levantava pela milésima
vez aquela suspeita de pederastia. Mas estava tão fraco, tão cansado, tão
sentido, que acabou desatando a chorar, o que causou certa compaixão ao outro.
Dr. Aprígio: “Abre seu coração,
meu querido. Antes de ser teu sogro, antes de ser teu patrão, eu sou teu amigo.
Percebo que estamos todos infelizes. Minha filha está infeliz, você está
infeliz..."
Arandir: “Dr. Aprígio, eu juro...
Eu nunca quis... Eu não. Eu sou homem. Eu amo a minha mulher. Por que estão
fazendo isso comigo?”
Dr. Aprígio [abraçando Arandir]
“Calma! Chora, meu rapaz. Chora, desabafa..."
Vendo-o chorar, tão suscetível,
feito uma criança, algo começou a queimar por dentro em Dr. Aprígio. Ele já não
aguentava mais sufocar seus sentimentos. Desde o episódio do beijo, desempenhou
com volúpia o papel torpe de serpente, envenenando o coração da própria filha,
fazendo com que ela acreditasse na culpa do marido. Culpa? Que culpa alguém
teria de ser homossexual, afinal? Por que resolveram proibir sentimentos tão
puros, tão bonitos? Sentimentos grandes, lancinantes, como o amor que ele,
Aprígio, sentia pelo genro, Arandir. Não conseguiu mais reprimir o impulso. Tomou
entre as mãos o rosto do genro e o beijou com sofreguidão. Este, surpreso e
assustado, se desvencilhou. O mundo desabou sobre a cabeça de Aprígio
Alcântara, homem de reputação ilibada, ex-presidente do Tribunal de Contas.
Dr. Aprígio: “Eu... Arandir...
Por favor! Calma! Vamos conversar!”
Arandir: “Eu vou embora. Não fico
mais um minuto aqui”.
Dr. Aprígio [interpondo-se entre
Arandir e a porta]: “Não! Por favor! Eu te imploro de joelhos!” [atirando-se
aos pés de Arandir] “Não vai! Deixa eu te falar o que se passa no meu coração.
Eu te amo. Eu sempre te amei”.
Arandir: “Me larga! Você está
maluco! Eu sou casado com a sua filha! Doente! Anormal!”
Soltou-se e caminhou em direção à
saída. Ouviu atrás de si o último clamor do sogro, gritando seu nome. Voltou-se
e ouviu um estampido. O sogro, de revólver na mão, atirara em seu coração. Arandir
caiu de bruços no meio da sala.
***
Ao ser preso, Dr. Aprígio alegou
que atirou para defender a honra da filha, manchada por aquele pederasta
ignóbil. A foto do cadáver de Arandir, acompanhada pelo texto cheio de
crueldade de Amado Ribeiro fez com que o jornal batesse o recorde de vendas em muitos
anos. Foi necessário tirar várias edições extras naquele dia, porque os jornais
rapidamente se esgotavam nas bancas.
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