Napoleão

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Por André Diniz*
Esse viado não vai fazer isso
comigo.
Eu tinha que descobrir do pior
jeito possível. Pelo computador. Tinha que ler na minha mesa de trabalho,
chegando de mais uma viagem pro Rio de Janeiro numa segunda-feira, que o
Nandinho estava falando pra Deus e o mundo que queria ir embora. Não estava
feliz, estava se sentindo menosprezado, que o treinador não gostava dele,
aquela palhaçada toda. Chilique dessa molecada de hoje que acha que é Deus e
tem que ser adulada por qualquer um.
Eu não me importo. Povo vem, povo
vai. Sempre é assim. Aqui não é uma família, aqui é um negócio. Gostou, vá pro
RH. Não quer mais, vá pro RH. Noventa e nove por cento dos jogadores são assim.
Claro, tem sempre os de pedigree, os estrelas de verdade. Esses que você tem
que colocar o seu melhor terno, tem que se aprumar, viajar, levar advogado,
assessor, nego que sabe desenvolver melhor as ideias. Você deixa eles fazendo o
trabalho pesado, deixa eles mostrando que o time tem garantias, que o outro
clube vai se dar bem, que não somos caloteiros. Daí eu chego com a minha
mágica. Dou o meu sorriso debochado, meio de cafajeste de novela mexicana, falo
algumas coisas em um inglês macarrônico ou em um espanhol que aprendi com meu
avô, e deixo a mágica acontecer.
Mas esse viado não vai fazer isso
comigo. Não mesmo. Quer ir pro time rival. Quer pegar o ônibus na frente do meu
CT e descer no ponto final, entrar como se fosse uma porra de refugiado
boliviano fugindo da fome e do inferno. E você sabe como esse povo é. Falam que
estão realizando o sonho, que serão eternos namorados da torcida, que vão
destruir nos clássicos. E nos clássicos contra o ex-clube sempre entram
mordidos, comem a bola, comem a grama. E comem o nosso cu no placar. Eu já
passei por isso duas vezes antes, e estou cansado disso.
Estou cansado dessa palhaçada. Eu
não estou aqui pra formar uma família, estou aqui pra gerir um negócio. Eu
quero que esse corno seja vendido para a Espanha, ou para a França. A Alemanha
ainda tem dinheiro? Talvez os chineses. Sim, os chineses compram qualquer
coisa. Compraram aquele folgado dos dreadlocks, eles vão pagar uma grana alta.
O Nandinho tem o estilo que os chineses estão procurando. Eles podem ensinar a
chinarada a organizar jogadas, fazer meio de campo, armar o ataque. Os amarelos
se esforçam, mas podem aprender. E eu vou ganhar dinheiro com o Nandinho. Nem
que seja na base da porrada.
Eu vou comer o cu de metade desse
prédio. Como foi que o treinador não me passou essa informação antes, que ele
tava de nove-horas? Como que o supervisor técnico deixou isso passar? O diretor
de futebol tava batendo punheta no banheiro na hora em que o Nandinho resolveu
largar o time, pensar em rescisão de contrato? E a diretoria, e o conselho
deliberativo? Porra, tanta gente pra encher o saco nessas horas sobre regimento
do clube, eleições, limites pro orçamento, sobre indicar primo e parente pra
comandar marketing, sobre dar pitaco em contrato de patrocinador, sempre enchem
o meu saco por coisas dessas. Pra proteger investimento, tá todo mundo pensando
na própria pica.
Mas esse viado não vai fazer isso
comigo. Não vai sair pela porta da frente, dando banana pra mim como se eu
fosse o Cristo Redentor no final de Vale Tudo. Não mesmo. Não depois da grana
que investi nele. Poderia ter investido em Marilson, que veio da base com ele.
Marilson se deu bem na Copa São Paulo. Era esforçado e tal, mas... não tinha
brilho. Parecia mais um Zé. Outro que serviria para carregar piano em time de
médio porte, ser estrela da Série B. Vendi o moleque para o Vitória assim que
tive a chance. Hoje o Marilson tá voando baixo, tem proposta da Europa e o
escambau. Achei que o Nandinho ia ser a minha salvação, ia deixar a gente no
azul, o povo ia poder pagar as dívidas, pagar a entrada do terreno do novo CT,
do Centro de Base, aquela porra toda. O Nandinho ia ser a salvação da lavoura.
Ia ser bom por todos nós.
Mas não estourou. Encucou com
alguma coisa, ficou com medo no jogo contra o São Paulo, tremeu na frente do
Palmeiras, e ficou apagado quando jogou com o Grêmio Osasco. Porra, mano.
Grêmio Osasco. Não estou falando de Borrussia, nem de Barcelona. Grêmio Osasco.
Isso foi o que bastou. O povo pegou no pé, o treinador mandou ele tomar um ar
no vestiário, a torcida pediu a cabeça do cara. Chinelinho, baladeiro, bagre.
Foi dali pra baixo. Estava pensando em vender o corno, mas está fechado em
copas que não quer passar por nenhuma transferência. Disse no Twitter que tava
“apalavrado” com o povo do outro lado da Linha 16. Apalavrado de cu é rola, meu
chapa. Ele não vai sair assim, saltitando sem deixar algum lucro pra mim.
Chamei o filho da puta na minha
sala. Onze da matina, pra não dar tempo do resultado da reunião sair no
programa da hora do almoço. Comigo ia ser no zero-a-zero. Sem assessor. Sem
empresário. No fio do bigode. Negócio de homem pra homem. Se ele é homem de
colocar na internet que acha que o time que eu estou há trinta anos é uma
bosta, ele vai falar isso na minha cara.
- Nandinho,
- Pois não, disse ele com uma
cara de bosta, olhando mais pra minha gravata que para os meus olhos. Fico puto
com nego que não me olha nos olhos quando o assunto é sério.
- Por quê isso, galã?, disse pra
ele, enquanto estendia uma cópia da tela onde ele falava que estava “cansado de
clube de cabeça pequena”
- Sr., eu não estou feliz aqui.
- Não tá feliz.
- Não estou feliz.
- Você corta cana? Você lava
banheiro? Eu te faço sentar no sol do meio-dia pra torrar pra ver se você vira
a porra do Pelé, seu puto? Tu veio da base. Tu tinha Playstation 3 no
alojamento, comia quatro vezes por dia, aprendeu inglês. Eu vi suas
entrevistas, você não é um analfabeto resmungando palavras em gerúndio. Tu é
GENTE. E você virou gente AQUI. Você nos deve, xará.
Enquanto eu falava, eu me
levantava devagar da mesa. Ele estava a uns quatro metros, se muito. Eu não
conseguia pensar muita coisa. Eu só conseguia ver todos os vilões de James Bond
surgindo na minha cabeça. Eu pensei até no vilão do Duro de Matar. Aquele
inglês tem talento pra caralho. E eu fiquei parado, com ele na minha frente,
com a bunda apoiada na mesa de carvalho inglês do clube, herança da fundação de
mais de 100 anos atrás.
- Senhor, com todo o respeito,
mas o senhor não é meu dono.
- O CARALHO! Eu sou seu dono sim,
seu moleque! Você tem um contrato com a gente e vai dançar conforme a música,
até a gente achar um outro lugar pra você dançar, tá entendido?!
- O Ronildo me adiantou os
esquemas, a janela de seis meses vence amanhã! Eu queria sair na boa, mas não
dá! Você....
(Cara, eu senti uma veia do meu
olho estourar quando ele me chamou de “Você”. Só minha mulher e meus filhos me
chamam de “você”. E eles tiveram que ganhar o direito.)
... você é a coisa mais escrota
que já aconteceu nesse clube! A gente não vai pra frente por sua causa! Você
acha que é dono disso aqui, mas tá de passagem, xará! Que nem eu!
Foi o que precisei. Passei a mão
no abridor de carta que estava em cima da mesa. Eu só dei uma, na coxa, e puxei
pro lado. Essa é a vantagem de você ser grande e gordo, e o outro cara ser um
moleque magrelo. Debaixo dessa banha ainda tem músculos. E eu senti uma alegria
imensa enquanto rasgava a calça de marca, a pele, e os músculos da coxa
esquerda dele de uma maneira porca e insensível. Esqueci os chineses, esqueci o
Playstation 3, esqueci o investimento. Esqueci que ele tinha que ser bom por
todos nós.
Ele ainda berrava alto, e o povo
inteiro entrou. Minha secretária, o empresário dele, o diretor de futebol, o
vice que estava passando no corredor. A sala virou um fuá. Foi foda. Eu só
sabia de uma coisa. Eu consegui apenas pensar na aula de história. Alexandre I
da Rússia foi o soberano que enfrentou as tropas de Napoleão. E queimou tudo o
que tinha para ser usado na Frente Russa para matar os franceses de fome no
inverno. General Inverno.
Eu falei que esse viado não iria
fazer isso comigo. Ele não vai jogar clássico contra o meu time. Ele não vai
dar entrevista inventando apelido idiota pro meu clube. Ele não vai escapar da
sina. Aqui não é uma família. Isso aqui é um negócio.
* André Diniz, nosso autor convidado, é jornalista, são-paulino e fã de blues. Sente saudades de Diego Lugano e dos Sobrinhos do Ataíde. Não sente saudades do colégio adventista, do Molejão e da vizinha que não lhe dava bola na adolescência (torce pra ela ter casado com um tecnocrata com disfunção erétil).