A procurada - Parte 3 (final)


Por Rafael Gimenez

Poucas coisas são mais injustas do que esse trocadilho que fizeram com meu sobrenome. Digam: se eu fosse mesmo canalha, eu iria arriscar minha vida indo atrás de uma vadia desconhecida refém de criminosos de sabe-se lá que laia? Puta merda. Eu podia simplesmente comunicar às autoridades policiais o sequestro da prostituta Maria da Paz, conhecida comercialmente pelo nome de Trinnity Matrix e o anunciado assassinato do investigador particular Afonso Alonso. Não tinha motivos pra ir me enfiar nos cafundós dos Judas, podendo aparecer boiando tempos depois num daqueles rios do Pantanal. Mas, puta merda, eu sou corajoso e bom. O primeiro empecilho apareceu já no avião, quando descobri que tinha esquecido meu remédio controlado. Tinha que explodir, pois estava numa crise de ódio, agravada pelo medo de voar. Do meu lado direito estava uma senhora e do esquerdo o Peralva, que recrutei para me acompanhar na viagem porque não havia outro idiota mais à mão. Olhava pra velhota, olhava pro Peralva com aquela cara de asno que ele tem, e meu desgosto pela vida ia aumentando, e fui achincalhando-o pelo esquecimento do meu remédio e, puta merda, o Peralva não tinha culpa. A velha, ao ouvir meu tom de voz elevando-se gradualmente, arregalou os olhos pra mim, e eu disse “que foi velhota, nunca viu um corno nervoso?”, e uma aeromoça aproximou-se e disse: senhor, algum problema?, e eu disse: “claro que sim, minha filha, o problema é que até agora não tomei uma dose de uísque, você pode trazer para mim, sim?” e ela disse que não ia me fornecer bebida alcoólica porque era contra as normas da empresa e porque eu estava visivelmente alterado. O Peralva então teve a brilhante ideia de me dar um tranquilizante que eu tomei e apaguei feito uma lâmpada dimerizada, sentindo que deixava pra trás aquele túnel horrível e claustrofóbico em que entrava sempre que não tomava meu remedinho controlado.

Em Corumbá me hospedei num hotel e dormi por doze horas. O combinado era encontrar um agente da “organização” num ponto qualquer da cidade e fazer a troca do dinheiro pela prostituta Maria da Paz. Eles me ligariam para dizer para onde eu deveria me dirigir. Me ligaram ao final de dois dias, em que eu já estava de saco cheio de esperar. Algum tipo escroto de terrorismo psicológico.

“Alô?”

“Canalha, ouça com atenção: primeiro queremos saber se você trouxe o bicho”.

“Bicho?”

“Sim. O jogo é duro e o bicho é alto, 100 mil reais, você sabe. Paga o bicho e nós liberamos a atleta”.

Os putos eram cheios de gracinha, metáforas futebolísticas. Entrei no jogo.

“Cem mil reais é um bicho alto, só pago isso em caso de título. Não podemos negociar?”

“É cem pila ou o jogo termina com morte súbita. Vai pegar ou largar?”

“Creio que vou pegar. Puta merda, como vai ser o esquema?”

“4-4-2. Quatro caras vão te buscar na Praça da República. Você vem com eles de carro, quatro rodas. Dá a grana e saem vocês dois, você e a garota”.

“Que garantia eu vou ter que você não vai me tirar de campo e ficar com a grana?”

“Não vou te tirar de campo porque você é conhecido e eu acabaria dançando. Vamos fazer a troca e encerrar o assunto, sem surpresas na escalação. Você faz o gol e sai pra galera, o jogo termina e vai cada um pro seu vestiário”.

Puta merda, peguei no guia o endereço da tal praça. O encontro era perto de um obelisco feito em homenagem à retomada da cidade, na Guerra do Paraguai. Eu teria minha própria batalha pra enfrentar. Fui pra lá e arrastei o Peralva comigo. Puta merda, fiquei com dó dele, tinha na cara estampado o pavor. Alguns minutos depois, chegou um sujeito mal encarado, de chapéu e óculos escuros.

“Era pra vir sozinho, rapaz. O que esse outro babaca tá fazendo aqui?”

“Ele é meu assessor”, respondi.

“Tá com a grana aí?”

Mostrei a pasta. Eles me mandaram entrar na van, empurraram o Peralva pra dentro. Nos vendaram. Foi a viagem mais longa que fiz na vida, dentro da escuridão da venda. Mergulhei fundo no túnel e senti vertigem de quem bate a cabeça numa pedra do fundo do lago. Desmaiei e acordei com a luz agredindo a visão. Estava amarrado no canto de um barracão, um sujeito sentado num caixote na minha frente, com a pasta 007 aberta no colo, contando o dinheiro.

“Acordou. Dá uma água pra ele”.

Eu estava amordaçado e só então percebi que estava meio sufocado. Puta merda, não se trata assim um dirigente esportivo de bom coração como eu. Tiraram a mordaça, me deram de beber. Não tinha sede, só a boca seca. Bebi um gole. Respirei. Recuperei a fala depois de ofegar um pouco.

“Por que estou amarrado aqui? O dinheiro está aí. Você não vai me soltar? Cadê a garota?”

“Calma, amizade! Devagar com o andor. Nós temos assuntos para resolver. Primeiro: eu preciso que você me dê uma garantia de que não vai correndo avisar a polícia do acontecido aqui. Só que, eu estive pensando... Não tem como você me dar uma garantia. Não por você ser dirigente de futebol: a maioria não vale nada e não cumpre o que promete. Lembro quando era garotinho e um cartola do meu time disse que não ia vender o craque, porque ele era insubstituível. Sabe o que ele fez? Vendeu pro maior rival. Ficamos com a maior cara de tacho, foi a maior decepção. Mas não, não é esse o problema. Veja bem, qualquer ser humano, sendo um dirigente dos mais canalhas ou apenas uma pessoa com medo, tem um sentido ético em que o impulso seria sair daqui direto pra uma delegacia”.

Eu tentava acompanhar o raciocínio dele e ouvia, sem dizer nada. Mas uma espécie de medo começava a tomar conta de mim.

“Você é um cara conhecido e poderoso. Sequestrar essa vadia foi um erro, a gente achou que ia negociar com o namorado dela e que ele ia liberar a grana, ele tem muita. Mas quando você entrou na jogada, complicou. Você tem contatos, conhece gente. Não sei ainda o que vamos fazer com você...”

Eu tenho uma qualidade que me coloca acima dos meus confrades do futebol: mesmo sob tensão, com medo, passando por privações ou diante da derrota iminente, eu nunca deixo de raciocinar com clareza. E, puta merda, alguma coisa naquela história não estava se encaixando. Lembrei-me de uma coisa muito importante: não foi a quadrilha quem me procurou, foi o detetive Alonso quem os localizou. E, por intermédio dele, submetendo-o sabe-se lá a quais métodos de interrogatório, eles chegaram a mim. Descobriram que eu é quem estava atrás da prostituta Trinnity Matrix, ou Maria da Paz Silva. Mas, de qualquer maneira, eles sabiam que ela era amante do centroavante do meu time. Deviam saber que ela era uma filha do local e planejaram o sequestro para obter fundos com o jogador, mas minha entrada em cena mudou o panorama. Agora o sujeito acenava ali de forma clara com a possibilidade de me eliminar. Tinha o dinheiro e sequer havia cogitado trazer a garota. Eu temia sim que ele me eliminasse, mas achava também que se fosse pra me matar, ele já estava embromando muito. Talvez estivesse realmente em dúvida do que fazer comigo. Me matar era caçar problemas, porque a polícia acabaria chegando a ele. Me deixar ir era correr riscos, porque de fato eu iria denunciá-lo. De fato era um dilema do xadrez.

“Amigo, veja bem. Me permita te dar um conselho. Posso?”

“Diga”, ele me disse, calmamente.

“Dentre todas as possibilidades que vós ora estuda e analisa, proponho descartar de imediato a minha execução e de meu assessor Peralva”.

Quando disse isso, lembrei-me do coitado do Peralva. Olhei pra ele, amarrado noutro canto da sala. Tremia como um descamisado no inverno siberiano. Puta merda. Prossegui:

“Como o senhor mesmo disse, eu sou bem relacionado. Minha morte não ficaria impune, e como percebi que o senhor é um apreciador de parábolas de futebol, permita-se fazer uma analogia (cavalgadura diplomada... hunf...): quando se dobra a marcação em cima de um craque, o jogador mediano fica livre e pode decidir a partida. Se eu morrer, com certeza meus amigos viverão para vingar a minha morte, entende?”

“Faz sentido, faz sentido...”

“Percebo, além disso, que o senhor é uma alma sensível e possui um repertório cultural diversificado, pelo nível do nosso diálogo. Dessa forma, acredito que podemos encontrar outra saída para essa crise”.

“De fato, de fato”.

Um silêncio encheu a sala. De repente ele se levantou, sacou a pistola.

“Mas...”, eu ia questionar, mas ele rapidamente me participou sua tomada de decisão.

“Desculpa, Sr. Canale, mas vou ter que eliminá-lo mesmo. É uma pena, eu fazia outra ideia do senhor. Achava que seria fácil e até prazeroso eliminar um Canalha, mas parece, pelo que conversamos, que o senhor é esclarecido e de bom nível cultural”. Enquanto ele falava, o aço da pistola brilhava como prata nova, iluminado pelas frestas da janela. Uma poça se formou sob Peralva e tive pena daquela indignidade. Pena e nojo. Puta merda, nem morrer como homem ele iria. O líder do bando prosseguiu: 

“Dizem por aí que o senhor é um ignorante. Que fala difícil porque é pedante e quer disfarçar a origem proletária. Isso é uma injustiça e me identifico com ela. Eu também sou um homem mal interpretado. Sabe como chamam meu grupo por aqui?”

Não respondi. Pra que ficar batendo papo com um cara que disse que vai te matar? Mas ele mesmo respondeu a pergunta retórica:

“Bando do maçarico. Porque, num assalto que fizemos, queimamos um guarda com maçarico. Acham que somos criminosos comuns, até hoje não descobriram a sofisticação do nosso grupamento”.

Ele falava difícil, queria mostrar erudição. Erudição que contrastava com aquele barraco de zinco fedido.

“Nosso modus operandi, nossos objetivos, a limpeza do nosso trabalho. Nada disso é levado em consideração, a polícia caçoa de nós. Por isso planejamos esse sequestro grande, envolvendo pessoas de projeção. Queremos levantar dinheiro para libertar nosso comandante maior, que está preso. Não roubamos apenas para ter o que ostentar. Eu mesmo, segundo homem na linha de frente, prefiro livros a carros”.

De repente tive uma crise de ódio.

“Putaquepariuputaquepariuchegaaaaaaaaaaaaaa! Chegaaaaaaaa, caralho!”

Ele me olhou espantado.

“E a garota? O que vai acontecer com ela?”, eu perguntava, mas no fundo já não me importava.

“Nós vamos soltá-la. Pode ficar tranquilo, temos ética. Só você e seu assistente é que, infelizmente, não podem viver”.

“Então, puta merda. Mata logo e acaba com essa ladainha”. Virei-me para Peralva: “Peralva, meu amigo... adeus! E para de chorar, porra!”

Ele apontou a arma e me disse: “Atiro no três. Um... dois...

“Espera! Dá pra pelo menos me desamarrar? Queria morrer de pé, como um homem.”

Ele fez um sinal de cabeça. O capanga desamarrou-me, dramaticamente fiquei diante dele com as mãos cruzadas no peito. Ele reiniciou a contagem: um, dois...

De repente, um estrondo contra a porta de metal do barracão. Barulho lá fora, movimentação. Uma voz acima das outras: “vocês estão cercados, libertem os reféns e saiam com as mãos para cima!”

O líder virou-se para mim. Sua expressão era calma. Não acreditei na cena que se sucedeu. Ele me disse “com vida jamais me pegam. O jogo acabou pra mim. Ouça o apito do juiz” e atirou contra a própria cabeça. No mesmo instante me joguei em cima da cadeira de Peralva, fomos os dois pro chão. Os policiais entraram atirando ao ouvir o tiro, acharam que algum refém fora executado. Os bandidos de dentro do barracão trocaram tiros, mas foram rapidamente vencidos. Quando os policiais entraram, olhei o saldo da batalha: cinco bandidos mortos, incluindo o líder. Um homenzinho baixo e meio encurvado entrou e o reconheci com imensa alegria: era o detetive Afonso Alonso.

“Puta merda! Eles não te mataram?”

“Eles tentaram. Depois explico com detalhes, agora os senhores vão acompanhar os policiais até a delegacia, por favor”.

***

Passados os procedimentos de praxe, Alonso me explicou tudo, daquele jeito metódico dele. Tirou um caderninho do bolso, onde havia feito apontamentos:

“Quando liguei para o senhor, no dia 15, às 16 horas, estava para lhe dizer tudo o que havia conseguido apurar. Primeiro item: a Srta. Maria da Paz Silva, ou Trinnity Matrix, havia sido contratada pela quadrilha para auxiliar no sequestro do jogador de futebol que atua no clube para o qual o senhor trabalha como dirigente. Ele era, portanto, o alvo inicial. Outra possibilidade era sequestrar uma parente do mesmo, possivelmente a mãe ou uma irmã. Item 2: a prostituta Trinnity Matrix, que já mantinha um caso com o jogador há algum tempo, percebeu que não seria necessário que a quadrilha se arriscasse sequestrando a ele ou alguém de sua família, crime que mobilizaria mídia e contingente policial. Percebendo que o jogador estava apaixonado por ela, de modo que nem ela própria achou que ocorreria, acreditou que seria mais simples e mais eficiente simular o próprio sequestro, a fim de extorquir o jogador. Item 3: quando consegui apurar essas informações e descobrir a trama em andamento, fui surpreendido pela quadrilha, que rapidamente decidiu que eu deveria ser eliminado. Eles se apoderaram de meu aparelho celular, que tinha o seu número gravado na memória como ligação feita. Levaram-me a lugar ermo servido de um riacho, onde pretendiam depositar meu cadáver. Chegamos à beira de um barranco e o riacho corria lá embaixo. Disseram que iam atirar em mim pelas costas e mandaram que eu corresse. Corri e fui alvejado, mas de raspão. Pulei e caí no riacho. Sabendo que se voltasse à superfície seria baleado novamente, pelos bandidos acima do barranco, mantive-me o maior tempo possível submerso, num incrível exercício de respiração sub-aquática – felizmente aquele meu treinamento de sobrevivência nas ilhas Galápagos me foi de grande valia. Consegui escapar com vida enquanto meus carrascos acreditavam terem conseguido eliminar-me. Item 4: após tratar meus ferimentos, fui à polícia e contei tudo o que sabia. O senhor foi monitorado desde São Paulo, quando embarcou no voo para Cuiabá e depois no trajeto de carro para Corumbá. Quando foi apanhado na Praça da República e levado para o cativeiro, também estava sendo seguido. Montou-se então a operação que acabou por salvá-lo, a si e ao Sr. Peralva.

Puta merda! Subestimei demais o detetive Alonso.

“E a prostituta? Que fim levou?”

“Evadiu-se. A polícia não conseguiu localizá-la”.

Devolveram os cem mil reais, aproveitei para pagar Alonso. Queria dar uma gratificação extra, afinal ele nos salvara a vida! Ele me mostrou o caderninho, onde estava anotado o valor que combinamos inicialmente.

“Veja. Quero apenas o que está registrado, nada mais. Creia: quando vendo meus serviços, incluo no preço todos os dispêndios. E isso inclui serviços eventuais e imprevistos. Nada de taxas extras, exceto aquelas que se refiram a viagens não previstas e os gastos com locomoção que estas geram”.

“Por favor, Seu Alonso, vamos considerar essa aventura uma viagem imprevista! Me sentiria melhor assim”.

Ele me deu um sorriso meio forçado, era metódico até pra sorrir. Aceitou um pichulé a mais e apertamos as mãos.

Voltei pra casa e pedi ao Peralva que guardasse segredo de tudo o que havia acontecido. Puta loucura, ninguém ia acreditar mesmo! Paguei um algodão doce pra ele, ele comeu. No avião ambos havíamos tomado tranquilizantes pra dormir.

Olha, é uma grande alegria chegar em casa depois de achar que ia pro saco e tomar um bom banho tépido (cavalgadura diplomada é meu pau de óculos, puta merda!), tomar seu remedinho controlado e dormir por doze horas seguidas. Soube que os inocentes da imprensa especularam que eu estive fora negociando um “grande jogador” para o clube. Pobre torcida, teria uma decepção.

***
Correu, bateu... pro goooooooooooooooool!

Às vezes a gente tenta das formas mais absurdas resolver um problema que parece insolúvel, mas o problema encerra em si sua própria solução, sendo inúteis os nossos esforços. Puta merda, dei agora pra filosofar. O fato é que o centroavante voltou a fazer seus gols, recuperara a “alegria das pernas”. Um dia abri uma dessas revistas de fofocas de celebridades, uma que tinha fotógrafos onipresentes, do tipo que estavam na churrascaria quando eu ameaçava dar um tabefe no manobrista e manchetavam “Cartola perde a cabeça e parte pra cima de funcionário” no dia seguinte. Imprensa marrom, abutres, puta merda. Abri o pasquim de quinta e lá estava a foto dele com uma morena do lado: “Fulano de tal encontra novo amor”. E o texto: “Fulano de tal, atacante do time tal, aparece sorridente para os fotógrafos ao lado da nova namorada, a modelo Maria da Paz”. Tomei um susto, li de novo. Estava diferente das fotos do site de classificados em que a tinha visto pela primeira e única vez, mas ali o rosto estava escondido. Mas, só podia ser ela. Quantas Marias da Paz podem dar em cima do mesmo jogador? O que faço?, pensei. Ligar para a polícia? Ligar pro Alonso? Avisar o sujeito de que ele estava nas garras da pistoleira de novo? Eu nunca cheguei a contar pra ele diretamente tudo o que aconteceu, nem pro Oliveira que era chegado dele eu falei. Pensei um pouco. Estava cansado. O bando do maçarico estava morto, só sobrara a foguentinha. Ele estava fazendo gols. Fechei a revista, tomei um uísque e dormi no sofá. Puta merda. 


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