Até quando?

Por Rafa Gimenez*


O futebol nos torna pessoas piores?

Começo este texto com uma indagação que me custa produzir. Mas, quanto mais penso no assunto, mais me deparo com ela. O fanatismo por esse esporte já me colocou diante de situações absurdas. Já vi gente aparentemente sensata assumir as posições mais controversas por causa de um clube de futebol. Isso aconteceu no sábado último, quando um grupo de pessoas, numa comunidade de corintianos em uma rede social, discutia a invasão do Centro de Treinamento Joaquim Grava, do Corinthians, por um grupo de marginais travestidos de torcedores. Bem, pelo menos é dessa forma que eu descrevo o fato. Um sujeito lá, nesse fórum de discussão, anunciou exultante: "Hoje é dia de tirar vagabundo do Corinthians na marra". 

Então deu-se a discussão e, enquanto alguns ponderavam o absurdo e a canalhice da situação - eu, entre estes - outros endossavam os atos dos sujeitos que depredaram o patrimônio do clube, agrediram jogadores e funcionários e furtaram objetos. Havia os adeptos da "canalhice moderada": "poxa, cobrar os caras tudo bem, mas bater na tia do café já é demais". É a turma do 'estupra, mas não mata'. Havia os radicais, os que acham que tudo é válido em nome do futebol, do "amor" por um clube. Entre estes havia quem garantisse que não houve qualquer agressão, que tudo era invenção da imprensa pra tumultuar o clube e proteger os "vagabundos" (no glossário destes elementos, vagabundo é a denominação para o jogador de futebol que não consegue vencer, mesmo que já tenha sido vitorioso algum dia). Quando o próprio presidente do Sport Club Corinthians Paulista confirmou que as agressões ocorreram e que uma das vítimas foi o peruano Paolo Guerrero, autor de um dos gols mais importantes da mais que centenária história corintiana, a tese da "cobrança" dentro de certos limites caiu por terra. Ficou explícita a canalhice e quem quisesse ser canalha que continuasse defendendo esses "métodos motivacionais" da facção "torcedora" corintiana. Isso vai ao encontro da minha pergunta, lá em cima, no começo desse desabafo. Em qual outra situação uma pessoa de bem - não gosto da expressão 'homem de bem', porque normalmente sai da boca e dos dedos de gente hipócrita, mas aqui cabe usá-la - apoiaria atos de selvageria como esses? Só no futebol os fins ainda justificam os meios (ainda que, nesse caso, não exista fim algum, uma vez que não é certo que um time passe a jogar melhor e a vencer apenas porque está sendo pressionado por trogloditas)?

Uma amiga questionou minha revolta. "Por que isso agora? Isso acontece no futebol desde sempre". É verdade. Acontece há muitos anos. Em relação a todos os clubes. Como corintiano, presenciei esse tipo de situação corriqueiramente desde que acompanho futebol. Mas há uma diferença. Aliás, duas. A primeira é que em todas as outras ocasiões em que "torcedores" (vou sempre usar aspas quando me referir assim a essa gente) emboscaram jogadores, o Corinthians era um clube atrasado, semiprofissional, sem estrutura, direção, administração e segurança. Os ataques aconteciam geralmente após eliminações traumáticas ou derrotas vexatórias e era sempre "cada um por si e Deus por todos" porque, não raro, o presidente estava envolvido com seus próprios problemas - investigações da Polícia Federal e afins. Pós-2007, quando o clube foi rebaixado no Campeonato Brasileiro, iniciou-se um processo novo de gestão, que apostou fortemente na estruturação do clube e no fortalecimento da sua marca. Imaginava-se que o Corinthians entrava num caminho novo, no qual não haveria espaço para situações como essa vivida no sábado. E aí entra a segunda razão para a minha revolta: é que estou cansado. Nunca me senti tão humilhado e envergonhado enquanto torcedor de uma agremiação de futebol, nem mesmo nas piores derrotas esportivas do meu time. Os fatos que envolvem o Corinthians desde fevereiro de 2013 - quando um rojão saído da torcida corintiana em Oruro ceifou a vida do menino boliviano Kevin Espada - estão, a cada dia, minando o ânimo e a paixão das pessoas que gostam do futebol como um esporte, não como um pretexto para a brutalidade. 

Quando aconteceu o triste episódio de Oruro, cometi algumas ingenuidades argumentativas das quais hoje, com o desenrolar dos fatos, me arrependo. Uma é achar que não se pode culpar o todo pela parte. Explico: muita gente, até por clubismo, atacou na ocasião a torcida organizada e o clube, acusando-os de autores do assassinato do jovem. Eu, na época, tomei defesa dessas instituições: "não, o clube não tem culpa". "Não, nem todo torcedor de organizada é bandido, é uma minoria criminosa dentro da agremiação". Aí você começa a analisar os fatos: dos presos em Oruro, dois estiveram presentes na posterior briga com "torcedores" do Vasco no Estádio Mané Garrincha, em Brasília. Um desses indivíduos marcou presença no ataque ao CT sábado. Não teria a Gaviões da Fiel força - ou vontade - para eliminar dos seus quadros associativos gente com essa ficha corrida, habitué de confusões e protagonistas de episódios que só prejudicam o clube - perda de mandos, prejuízos financeiros, etc - além de, é claro, afastar as famílias dos estádios? E o Sport Club Corinthians Paulista? Esse "novo" Corinthians, o que nós, ingênuos, achávamos que tinha mudado depois de anos de amadorismo. O que espera esse clube para tomar uma providência concreta? Para romper de uma vez com a marginalidade que, a pretexto de um suposto "amor" pelo alvinegro, comete barbáries, hostiliza jogadores, ameaça a integridade de pessoas, marca brigas pela internet? Além da impunidade reinante, as duas entidades - Corinthians e Gaviões - são coniventes com cada ato absurdo praticado pelos marginais "em nome do Corinthians". Diria, hoje, que são cúmplices, merecedoras de todas as sanções em cada um dos episódios.

Estamos entrando por um caminho perigoso quando deixamos uma meia dúzia - uma meia dúzia talvez mais numerosa do que pensávamos, é verdade - violar a imagem de uma torcida de 30 milhões de pessoas, sui generis no mundo, que já invadiu duas vezes o Maracanã e recentemente tomou de assalto os estádios de Toyota e Yokohama, do outro lado do mundo.

Estamos presenciando a total degradação de um esporte que tanto amamos, quando na parte de cima os dirigentes o corrompem a cada dia, tirando seus benefícios econômicos e políticos, e na rabeira estamos entregues à violência e brutalidade dos "organizados". 

É preciso que seja feita uma reflexão. Não estamos levando a sério demais a paixão clubística? Não seria hora de "dar um tempo"? Derrubar o castelo e reconstruí-lo do zero? Acabar com essa loucura, voltar à razão pura e simples, àquela que obriga até o mais fanático torcedor a dizer: peraí! Estamos passando dos limites!?

 Não sei vocês, mas eu preciso de umas férias dessa porra toda. 


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* Rafa Gimenez escreve às quintas, no Futebol Cartesiano, a coluna "Resenhas Inventadas". 

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  1. Concordo, Charlie Brown. Criticar essa corja é o mínimo que devemos fazer, mas temos que ver o quanto compactuamos com isso.

    Seria o caso de pressionarmos o Clube a romper com as organizadas, como o Cruzeiro fez? Pressionar como? boicotar a Todo Poderoso? Um dia sem comprar itens do Clube? Uma semana? Boicotar jogos? escrever para o Clube? não sei, mas fazer um "terceiro poder" para que esses desvios de percurso parem de se confundir com o caminho (ou via crucis?) do Corinthians.

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  2. Meu caro Wellington, infelizmente nós, torcedores de verdade, muito pouco podemos fazer para reverter essa situação. O exemplo do que pode ser feito vem de fora, é o exemplo inglês. O país sofria há décadas com problemas de violência nos estádios até que na gestão Tatcher foram impostas sanções severas aos clubes e aos vândalos envolvidos em violência no futebol. Sanções que incluíam exclusão dos times ingleses das competições europeias até que o problema fosse resolvido. Não vejo isso acontecendo tão cedo aqui no Brasil, país em que a lei é frouxa e a tolerância é mil (parafraseando aquele quadro satírico do saudoso Hermes e Renato). Me sinto até mal em falar essas coisas, parece discurso ultraconservador, mas enquanto as leis não se tornarem mais rígidas, vamos conviver com esses problemas eternamente.

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    Respostas
    1. Jovem, só não concordo que as leis são frouxas. Como em muitas outras esferas jurídicas, já há leis bastantes para fazer as devidas punições. O problema, como diria o Mário, (que Mário?) (aquele que é presidente no Corinthians): "temos que ver se há vontade política para isso". O certo, no caso da mais recente de invasão, seria levar vários camburões (navios negreiros?) e colocar todo mundo em cana - mesmo porque, como vc disse no texto, muitos já tem milhagens acumuladas no sistema carcerário brasileiro e até internacional. Se 70 negos invadem a Coca-Cola ou a Pirassununga 51, a polícia do Sr Alckmin baixa e desce o cacete.

      Agora, essa onda de 'veja bem', por parte dos próprios agredidos, é que pode, é que não dá!

      PS.: outra coisa que estive pensando depois que escrevi a primeira resposta... quanto tempo as pessoas realmente gastam com futebol? (assistindo a jogos + programas de televisão + internet + discussão em bar ou no trabalho + respondendo a enquetes). Daria uma boa enquete...

      Excluir
    2. Há leis, mas elas são cheias de brechas. Por exemplo, no Brasil o sujeito é condenado a 30 anos de prisão, mas só cumpre 1/3 da pena. A meu ver, coisas assim fazem com que o sistema judiciário esteja sempre em descrédito. Os sujeitos que vão e depredam um CT estão se apoiando em que? Na conivência do clube ou na certeza da impunidade (saber que no máximo irão a uma delegacia prestar depoimento para ser liberados em seguida, sem nunca responder processo pelos crimes cometidos)? Ou, no caso, as duas coisas?

      Sobre o tempo perdido com futebol, eu perco mais tempo do que deveria.

      Excluir

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