O jogo do ano




Era a grande final. Dois times cascudos, que correram a várzea aplicando surras em todos os cobrões. O Tupac FC tinha o artilheiro do campeonato, Nêgo Magro (assim chamado para diferenciá-lo do goleiro, Nêgo Gordo). O outro time não tinha nenhum craque, mas tinha treinador, Seu Chico. Seu Chico era fogueteiro, vendia pipa, fazia biscate de eletricista. Mas sua verdadeira vocação era a de técnico de futebol, todos sabiam. E sua especialidade era descobrir talentos. Seu Chico treinou outros times antes de chegar ao Tolima Paulista. Em 2011, depois que o Corinthians fora eliminado da Libertadores na fase preliminar, pelo até então desconhecido time colombiano, a rapazeada do bairro, empolgada, resolveu fundar um novo time, já que muitos ali não conseguiam jogar nem no terceiro quadro do Estrela da Manhã, time tradicional daquela quebrada. Houve tumulto e porradaria já na primeira reunião, os corintianos do pedaço não aceitaram o nome, a provocação. Mas foi o que prevaleceu, e o Tolima Paulista entrou em campo pra sua primeira partida com apenas um corintiano na escalação: o goleiro Mão de Pau, que sabia não poder se dar ao luxo de boicotar a empreitada, já que sua ruindade não o faria ser admitido em qualquer outro time. No começo, claro, o Tolima só apanhou: na bola e no literal. Mas embora não tivesse craques, tinha uns caras parrudos, e ficou conhecido na várzea como um time bom de briga. Foi conquistando adesões, até gente do Estrela da Manhã aparecia às vezes pra reforçar o plantel. Time foi melhorando e melhorou de vez quando veio Seu Chico. Seu Chico conscientizou a turma de que não adiantava quebrar costela e dente do adversário se o time era uma merda em campo. Ia acabar encontrando emboscada em alguma esquina. Apresentou aos brutos uma coisa até então inédita para eles: o esquema tático. O time vinha de 12 derrotas quando foi jogar na zona leste contra um dos escretes mais brabos do lugar. O que marcou a todos foi a partida extraterrena do Mão de Pau, que pegou até pensamento. Pegou tanto naquele jogo que, na saída, pegou até a mulher de um bandidão do lugar, sem saber da situação da moça. Seu Chico teve de implorar pela vida de seu goleiro e não foi fácil evitar aquele desfalque crônico. Vida que segue, Mão de Pau sentia-se como se tivesse nascido de novo e, nessa nova encarnação, voltou à sua imperícia habitual, batendo roupa, tomando frango, trombando com os zagueiros. Mesmo assim, o Tolima reagiu no campeonato e começou a disputar com o Tupac pra ver quem ia ser campeão. O último jogo ia ser na casa do adversário, era de vida ou morte e ninguém estava para brincadeira. Seu Chico chamou Mão de Pau, era hora de entrar em cena a motivação e o reforço psicológico:

“Se frangar, te entrego de bandeja pro Marcinho lá do Ermelino, aquele que tu papou a mulher dele. Vai lá, fecha a porra do gol lá!”

Calção, meia, caneleira, chuteira. Seu Chico chamou todo mundo, repassou o que cada um iria fazer. Era o jogo da vida deles, corriam boatos de que olheiros de times profissionais estariam por ali. Quem sabe alguém não sairia direto pro Juventinho da Javari, pra Lusa. Sonhar não custa nada, e se tivesse mesmo alguém do Curíntia, do Parmera, do São Paulo? A maioria ali já estava velho pro futebol profissional, mas Seu Chico disse: “O Liedson, do Curíntia, era caixa de mercado até os 20 anos, foi descoberto tarde. E taí! Eu acho que muitos de vocês podem chegar. Você, Preá!” – disse apontando para o centroavante – “Você tem bola pra jogar em qualquer time desses aí. Aonde que tu é pior que esses caneludos que jogam na Série A?”. E finalizou: “Vamo lá rapazeada, a hora é essa! Vamo pra dentro desses viado, esse troféu nós vai levar pra nossa quebrada amada!”

Deram o grito de guerra e foram para o campo. Com eles, iam os sonhos, a gana da vitória. Seu Chico tinha mesmo feito milagres, a formação que entrava em campo contava com alguns bons valores e ele tinha, até mesmo, acabado com aquela besteira de corintiano não querer jogar no time. “Corintiano maloqueirão é bom de bola, precisamos deles também”, dizia sempre. Alguns quadros eram egressos do Estrela da Manhã, o Tolima tinha se tornado popular. O Tupac, até por jogar em casa, era favorito, o time era bom, Nêgo Magro fazia gol de todo jeito. Mas eles acreditavam na vitória. Preá estava convencido: “Faço o gol da vitória, impressiono o olheiro da Lusa, faço peneira lá semana que vem”. Mentalizou seu orixá, pediu proteção.

“Caralho, quanta gente!”. Mão de Pau não acreditava no que via. O campo estava tomado. Mas fixando-se melhor nas pessoas, começaram a perceber que a expressão que predominava nos rostos não era a alegria por uma partida de futebol, tampouco a energia raivosa e irônica de gargantas que gritavam movidas pela rivalidade. Uma luz vermelha intermitente iluminou a cara bixiguenta de Seu Chico, trazendo-lhe tristes deja vus de sua juventude. Viram logo as viaturas da polícia, e um policial que se aproximou deles:

“Não vai ter jogo, molecada!”

Antes que perguntassem, o gambé apontou pro meio do campo, de pouca grama e muita terra. O que todos viram primeiro, antes dos corpos picados de balas, foi o cachorro magro que circulava por ali lambendo o sangue empoçado, até ser expulso por alguém que isolava o local.

“Desovaram ontem esses presuntos aí, acho que executaram os indivíduos aí mesmo. Estamos esperando a perícia. Então, todo mundo circulando, vambora!”

Preá chorou, todos os meninos tinham os olhos repletos de lágrimas silenciosas. Até Seu Chico, cujo coração não havia se embrutecido pelo tempo, pela vida, pela vivência, levou as mãos aos olhos vermelhos e os esfregou com força, até recuperar a voz e dizer: “Vambora, meninos. Hoje é domingo, tenho que visitar minha neta ainda...”


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  1. Rafa Gimenez tem uma longa trajetória de contos cortantes. Tomou na fonte de Veríssimo, de Sabino, de Nelson e dos Reis Malditos. Escreveu histórias que se perderam nas brumas da internet antes do Google guardar tudo - histórias cortantes, histórias sacanas, histórias tristes de finais agridoces. Ele faz a história silenciosa de um tempo. Mas o tempo não será injusto tempo demais e irá fazer justiça, revelando o talento.

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  2. Nosso Rubem Fonseca jovem e sem marketing. Muito bom, parabéns.

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