O jogo do ano

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“Se frangar, te entrego de
bandeja pro Marcinho lá do Ermelino, aquele que tu papou a mulher dele. Vai lá,
fecha a porra do gol lá!”
Calção, meia, caneleira,
chuteira. Seu Chico chamou todo mundo, repassou o que cada um iria fazer. Era o
jogo da vida deles, corriam boatos de que olheiros de times profissionais estariam
por ali. Quem sabe alguém não sairia direto pro Juventinho da Javari, pra Lusa.
Sonhar não custa nada, e se tivesse mesmo alguém do Curíntia, do Parmera, do
São Paulo? A maioria ali já estava velho pro futebol profissional, mas Seu
Chico disse: “O Liedson, do Curíntia, era caixa de mercado até os 20 anos, foi
descoberto tarde. E taí! Eu acho que muitos de vocês podem chegar. Você, Preá!”
– disse apontando para o centroavante – “Você tem bola pra jogar em qualquer
time desses aí. Aonde que tu é pior que esses caneludos que jogam na Série A?”.
E finalizou: “Vamo lá rapazeada, a hora é essa! Vamo pra dentro desses viado,
esse troféu nós vai levar pra nossa quebrada amada!”
Deram o grito de guerra e foram
para o campo. Com eles, iam os sonhos, a gana da vitória. Seu Chico tinha mesmo
feito milagres, a formação que entrava em campo contava com alguns bons valores
e ele tinha, até mesmo, acabado com aquela besteira de corintiano não querer
jogar no time. “Corintiano maloqueirão é bom de bola, precisamos deles também”,
dizia sempre. Alguns quadros eram egressos do Estrela da Manhã, o Tolima tinha
se tornado popular. O Tupac, até por jogar em casa, era favorito, o time era
bom, Nêgo Magro fazia gol de todo jeito. Mas eles acreditavam na vitória. Preá
estava convencido: “Faço o gol da vitória, impressiono o olheiro da Lusa, faço
peneira lá semana que vem”. Mentalizou seu orixá, pediu proteção.
“Caralho, quanta gente!”. Mão de
Pau não acreditava no que via. O campo estava tomado. Mas fixando-se melhor nas
pessoas, começaram a perceber que a expressão que predominava nos rostos não
era a alegria por uma partida de futebol, tampouco a energia raivosa e irônica
de gargantas que gritavam movidas pela rivalidade. Uma luz vermelha
intermitente iluminou a cara bixiguenta de Seu Chico, trazendo-lhe tristes deja
vus de sua juventude. Viram logo as viaturas da polícia, e um policial que se
aproximou deles:
“Não vai ter jogo, molecada!”
Antes que perguntassem, o gambé
apontou pro meio do campo, de pouca grama e muita terra. O que todos viram
primeiro, antes dos corpos picados de balas, foi o cachorro magro que circulava
por ali lambendo o sangue empoçado, até ser expulso por alguém que isolava o
local.
“Desovaram ontem esses presuntos
aí, acho que executaram os indivíduos aí mesmo. Estamos esperando a perícia.
Então, todo mundo circulando, vambora!”
Preá chorou, todos os meninos
tinham os olhos repletos de lágrimas silenciosas. Até Seu Chico, cujo coração
não havia se embrutecido pelo tempo, pela vida, pela vivência, levou as mãos
aos olhos vermelhos e os esfregou com força, até recuperar a voz e dizer:
“Vambora, meninos. Hoje é domingo, tenho que visitar minha neta ainda...”
Rafa Gimenez tem uma longa trajetória de contos cortantes. Tomou na fonte de Veríssimo, de Sabino, de Nelson e dos Reis Malditos. Escreveu histórias que se perderam nas brumas da internet antes do Google guardar tudo - histórias cortantes, histórias sacanas, histórias tristes de finais agridoces. Ele faz a história silenciosa de um tempo. Mas o tempo não será injusto tempo demais e irá fazer justiça, revelando o talento.
ResponderExcluirNosso Rubem Fonseca jovem e sem marketing. Muito bom, parabéns.
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