O gol

“Forrest Gump é mato. Vou contar uma história real, vou contar a minha”.
Mano Brown in Negro Drama.

 Imagem: http://senaiipiranga113.blogspot.com.br/2012_05_01_archive.html
Eu tinha 14 anos quando cheguei ali. Tinha sido criado dentro de casa, empinando pipa no ventilador, como se diz. Os moleques pareciam tão mais velhos, e alguns eram mesmo. Malandragem das quebradas de Sampa, muita zona leste, ABC, São Mateus, Mauá. Um dos mais chegados era aqui da ZN, Jardim Brasil. Gostava dele, mas tungou meu walkman.

Era um peixe fora d’água, de jaleco azul e óculos de proteção. Na primeira semana, depois da entediante aula teórica de eletroeletrônica – que eu acompanhei com atenção e interesse – aprender a fazer emendas na oficina. Penei, não era a minha. Pedi ajuda aos colegas, disseram “te vira”. Só fui aprender dali uns dois dias, quando o parça de bancada, são-paulino e gente boa, apareceu depois de dois dias sumido e estava também por fora. Chamamos o professor mais cricri, aquele que todo mundo temia. Ele disse “quando tiverem dúvida, é só falar, vocês aqui são nossos clientes”. Gostei, aquilo me deu confiança. Meu parça de bancada, o Recheio, era gente fina. Meu xará e com gostos em comum. Íamos andando da Vila Mariana ao Ipiranga falando de futebol, meu time surrando o dele naquela época – Dida pegou os pênaltis do Raí e coisa e tal. Ele morava na Vila Guarani, uma quebrada perto do Jabaquara. Cantava rap (errado) enquanto a gente picava fio – “hey Brown, nem vai, nem cola, não vale a pena dar ideia neste país – e fazia o moonwalk em momentos de descontração. Um dia me queimou com o ferro de solda, acidentalmente. Achou que já tinha esfriado quando encostou aquela porra no meu braço. Maior bobeira. Dei um grito, a queimadura ardia. A molecada botou pilha, dizendo que foi de propósito. Eu sabia que não, mas precisava ir até a enfermaria. Hoje, tantos anos depois, penso que devia ter mentido, que devia ter dito que me queimei sozinho, por descuido, por acidente. Mas eu disse a verdade e o Recheio foi suspenso. A mãe dele me ligou depois pra pedir desculpas pelo filho, que ele não fez por mal, que era o único filho homem, que ela trabalhava fora o dia inteiro, que estava tentando pô-lo na linha. Eu sabia que ela estava conseguindo, que ele era do bem. Recheio e eu seguimos amigos até o fim do curso. Mano Recheio, desculpa a mancada, e a cicatriz já até sumiu do meu pulso. E o estanho não entrou no meu sangue e não me envenenou, como a galera dizia que ia acontecer, pra botar pilha.

Se a eletroeletrônica não era meu forte, mais bizarras eram as aulas de educação física. A começar pela escolha dos times pro futebol de salão. De short azul marinho, camiseta branca e tênis, sentado no chão da quadra, eu aguardava sem esperança. Geralmente era o último a ser escolhido, e sempre ante certo ar de resignação do capitão do time “tá bom, Gimenez, vem você!”. O jogo? Me limitava a correr pela quadra, à espera de uma bola que nunca chegava. Quando alguém se atrevia a tocar pra mim, logo se arrependia: a bola era roubada como se rouba, sei lá, doce de criança? Esse clichê serve. Não gostava da educação física, desde muito antes disso. Ali ainda havia requintes de crueldade, porque vira e mexe eu era o escolhido para ter a cueca jogada em local de difícil acesso, em cima dos chuveiros, no vestiário.

Recheio jogava o campeonato de futsal da escola no segundo quadro do pessoal da sala. Jogava bem, mas não o suficiente pro primeiro time. Na verdade, se ele jogasse o quanto falava, sairia dali pra um time profissional. “Fiz tantos gols no campeonato passado, fui artilheiro do time, você não fez isso de gols nem nos treinos da educação física”, me dizia, tirando onda. Não vesti azul, mas minha sorte um belo dia mudou. Um escanteio, o Alemão foi pra cobrança. Fiquei lá no meio da área, desalentado, ninguém me marcando – me marcar pra quê? O Alemão viu e cobrou com perfeição, tanta que só deixei a bola bater na minha cabeça. Entenda: não cabeceei. A bola bateu no meu cocuruto. Não testei, não raspei de cabeça, não fiz nenhum movimento especial. Ela veio, bateu no topo dessa minha cabeçorra e subiu. Descreveu uma espetacular parábola e caiu. Dentro do gol. Um lance magistral. Absolutamente defensável, mas qual goleiro teria a coragem? O que sucedeu-se a seguir? Estupefação geral. A Terra parou por um segundo. Vieram todos: Gordo, Recheio, Colher, Mauá I e Mauá II, Grandão, Jorge Pêlo, Big Johnson, Óleossandro, Paulo, Zé Colméia, Robson Pomba, (Marcelo) Maria, Neguinho... Só faltou me lançarem ao ar, em ululante celebração. Sabe Pelé marcando o gol na final da Copa de 58? Então. Foi o primeiro dos 6 gols que faria em minha carreira ali. Não foi o gol mais bonito: fiz um chutando de longe, outro num chute seco após uma bola do Paulo que bateu na trave, outro driblando o goleiro – que era o Gordo, então não se pode dizer que foi um drible difícil. Além dos gols, mitologia. Convidaram-me até pra jogar no 3º time da sala no campeonato, o Óleos FC – tinha esse nome porque contava, em seu elenco, com alunos conhecidos especialmente por serem puxa-sacos dos professores (que, segundo a lenda, passavam óleo nos testículos pra escorregar esse pessoal), daí o nome. Tá certo que o convite se deu só para encher linguiça, porque faltava um pra completar o escrete. Fui inscrito no campeonato, mas quando surgiu uma chance pra entrar em quadra, não quis. Me acovardei. Jogar pateticamente na educação física era uma coisa, na frente da escola toda em horário de almoço era outra. Virei apenas atleta torcedor e entusiasta do Óleos. Eles foram goleados por todos os times do campeonato, mas “revelaram” um talento: Neguinho, que dali a pouco passou a integrar o Ubiratan, time principal da nossa turma e bicampeão do Interclubes da escola.


Hoje, tenho saudades daquela época. Tenho saudades de momentos sublimes, como a ocasião em que matei uma bola no peito, bonito, com estilo... e caí sentado na quadra. Ou a ocasião em que quis imitar os grandes craques e chutei em direção ao gol uma bola que voltava do mesmo – alguém já tinha anotado o tento. Na minha fúria catártica, não vi que alguém estava na trajetória da bola e acertei uma senhora bolada na cara de um colega que correu atrás de mim pelas quadras, até me alcançar no vestiário para me dar uma coça. Me bateu, eu chorei, ele se arrependeu, pediu desculpas, não aceitei e corri atrás dele pra revidar, ele me bateu de novo, chorei, ele pediu desculpas, desculpei, não por medo de apanhar de novo, mas porque perdoar é cristão. São histórias banais, eu sei. Mas eu já tive meu dia de consagração esportiva. Meu dia de Pelé na Copa de 58.

* Rafa Gimenez é jornalista, ex-poeta, contista. É também eletricista de manutenção formado pelo Senai, mas nunca levou jeito para esse ofício, além de ter medo de altura e de eletricidade. Ama futebol, mas sempre foi um tremendo perna-de-pau. Escreve às quintas o "Resenhas inventadas", coluna de contos que tem o maravilhoso esporte bretão como tema central ou pano de fundo. A resenha nem sempre é inventada, mas pode ser romanceada.

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  1. Huahuahuahuahauhua a melhor! Cacete revivi meus dias de SENAI na Mooca, no Morvan Figueiredo, arrumando treta e me fodendo na maior inocência. Ótimos tempos!

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    1. Quem fez Senai sabe desses lances... Não mencionei na crônica, mas nesses campeonatos de futsal havia duas competições: a de futsal propriamente dito e a de porrada. haha

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