O gol

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“Forrest Gump
é mato. Vou contar uma história real, vou contar a minha”.
Mano Brown in Negro Drama.
Imagem: http://senaiipiranga113.blogspot.com.br/2012_05_01_archive.html

Era um peixe fora d’água, de
jaleco azul e óculos de proteção. Na primeira semana, depois da entediante aula
teórica de eletroeletrônica – que eu acompanhei com atenção e interesse –
aprender a fazer emendas na oficina. Penei, não era a minha. Pedi ajuda aos
colegas, disseram “te vira”. Só fui aprender dali uns dois dias, quando o parça
de bancada, são-paulino e gente boa, apareceu depois de dois dias sumido e
estava também por fora. Chamamos o professor mais cricri, aquele que todo mundo
temia. Ele disse “quando tiverem dúvida, é só falar, vocês aqui são nossos
clientes”. Gostei, aquilo me deu confiança. Meu parça de bancada, o Recheio,
era gente fina. Meu xará e com gostos em comum. Íamos andando da Vila Mariana
ao Ipiranga falando de futebol, meu time surrando o dele naquela época – Dida pegou
os pênaltis do Raí e coisa e tal. Ele morava na Vila Guarani, uma quebrada
perto do Jabaquara. Cantava rap (errado) enquanto a gente picava fio – “hey Brown,
nem vai, nem cola, não vale a pena dar ideia neste país – e fazia o moonwalk em momentos de descontração. Um dia
me queimou com o ferro de solda, acidentalmente. Achou que já tinha esfriado
quando encostou aquela porra no meu braço. Maior bobeira. Dei um grito, a
queimadura ardia. A molecada botou pilha, dizendo que foi de propósito. Eu
sabia que não, mas precisava ir até a enfermaria. Hoje, tantos anos depois,
penso que devia ter mentido, que devia ter dito que me queimei sozinho, por
descuido, por acidente. Mas eu disse a verdade e o Recheio foi suspenso. A mãe
dele me ligou depois pra pedir desculpas pelo filho, que ele não fez por mal,
que era o único filho homem, que ela trabalhava fora o dia inteiro, que estava
tentando pô-lo na linha. Eu sabia que ela estava conseguindo, que ele era do
bem. Recheio e eu seguimos amigos até o fim do curso. Mano Recheio, desculpa a
mancada, e a cicatriz já até sumiu do meu pulso. E o estanho não entrou no meu
sangue e não me envenenou, como a galera dizia que ia acontecer, pra botar
pilha.
Se a eletroeletrônica não era meu
forte, mais bizarras eram as aulas de educação física. A começar pela escolha
dos times pro futebol de salão. De short azul marinho, camiseta branca e tênis,
sentado no chão da quadra, eu aguardava sem esperança. Geralmente era o último
a ser escolhido, e sempre ante certo ar de resignação do capitão do time “tá
bom, Gimenez, vem você!”. O jogo? Me limitava a correr pela quadra, à espera de
uma bola que nunca chegava. Quando alguém se atrevia a tocar pra mim, logo se
arrependia: a bola era roubada como se rouba, sei lá, doce de criança? Esse
clichê serve. Não gostava da educação física, desde muito antes disso. Ali
ainda havia requintes de crueldade, porque vira e mexe eu era o escolhido para
ter a cueca jogada em local de difícil acesso, em cima dos chuveiros, no
vestiário.
Recheio jogava o campeonato de
futsal da escola no segundo quadro do pessoal da sala. Jogava bem, mas não o
suficiente pro primeiro time. Na verdade, se ele jogasse o quanto falava,
sairia dali pra um time profissional. “Fiz tantos gols no campeonato passado,
fui artilheiro do time, você não fez isso de gols nem nos treinos da educação
física”, me dizia, tirando onda. Não vesti azul, mas minha sorte um belo dia
mudou. Um escanteio, o Alemão foi pra cobrança. Fiquei lá no meio da área,
desalentado, ninguém me marcando – me marcar pra quê? O Alemão viu e cobrou com
perfeição, tanta que só deixei a bola bater na minha cabeça. Entenda: não cabeceei.
A bola bateu no meu cocuruto. Não testei, não raspei de cabeça, não fiz nenhum
movimento especial. Ela veio, bateu no topo dessa minha cabeçorra e subiu.
Descreveu uma espetacular parábola e caiu. Dentro do gol. Um lance magistral.
Absolutamente defensável, mas qual goleiro teria a coragem? O que sucedeu-se a seguir? Estupefação geral. A Terra parou por um segundo. Vieram todos: Gordo,
Recheio, Colher, Mauá I e Mauá II, Grandão, Jorge Pêlo, Big Johnson,
Óleossandro, Paulo, Zé Colméia, Robson Pomba, (Marcelo) Maria, Neguinho... Só
faltou me lançarem ao ar, em ululante celebração. Sabe Pelé marcando o gol na
final da Copa de 58? Então. Foi o primeiro dos 6 gols que faria em minha
carreira ali. Não foi o gol mais bonito: fiz um chutando de longe, outro num
chute seco após uma bola do Paulo que bateu na trave, outro driblando o goleiro
– que era o Gordo, então não se pode dizer que foi um drible difícil. Além dos
gols, mitologia. Convidaram-me até pra jogar no 3º time da sala no campeonato,
o Óleos FC – tinha esse nome porque contava, em seu elenco, com alunos
conhecidos especialmente por serem puxa-sacos dos professores (que, segundo a
lenda, passavam óleo nos testículos pra escorregar esse pessoal), daí o nome.
Tá certo que o convite se deu só para encher linguiça, porque faltava um pra
completar o escrete. Fui inscrito no campeonato, mas quando surgiu uma chance pra entrar em quadra, não quis. Me acovardei. Jogar pateticamente na educação física
era uma coisa, na frente da escola toda em horário de almoço era outra. Virei
apenas atleta torcedor e entusiasta do Óleos. Eles foram goleados por todos os times
do campeonato, mas “revelaram” um talento: Neguinho, que dali a pouco passou a
integrar o Ubiratan, time principal da nossa turma e bicampeão do Interclubes
da escola.
Hoje, tenho saudades daquela época.
Tenho saudades de momentos sublimes, como a ocasião em que matei uma bola no
peito, bonito, com estilo... e caí sentado na quadra. Ou a ocasião em que quis
imitar os grandes craques e chutei em direção ao gol uma bola que voltava do
mesmo – alguém já tinha anotado o tento. Na minha fúria catártica, não vi que
alguém estava na trajetória da bola e acertei uma senhora bolada na cara de um
colega que correu atrás de mim pelas quadras, até me alcançar no vestiário para
me dar uma coça. Me bateu, eu chorei, ele se arrependeu, pediu desculpas, não aceitei e corri
atrás dele pra revidar, ele me bateu de novo, chorei, ele pediu desculpas,
desculpei, não por medo de apanhar de novo, mas porque perdoar é cristão. São
histórias banais, eu sei. Mas eu já tive meu dia de consagração esportiva. Meu
dia de Pelé na Copa de 58.
* Rafa Gimenez é jornalista, ex-poeta, contista. É também eletricista de manutenção formado pelo Senai, mas nunca levou jeito para esse ofício, além de ter medo de altura e de eletricidade. Ama futebol, mas sempre foi um tremendo perna-de-pau. Escreve às quintas o "Resenhas inventadas", coluna de contos que tem o maravilhoso esporte bretão como tema central ou pano de fundo. A resenha nem sempre é inventada, mas pode ser romanceada.
Huahuahuahuahauhua a melhor! Cacete revivi meus dias de SENAI na Mooca, no Morvan Figueiredo, arrumando treta e me fodendo na maior inocência. Ótimos tempos!
ResponderExcluirQuem fez Senai sabe desses lances... Não mencionei na crônica, mas nesses campeonatos de futsal havia duas competições: a de futsal propriamente dito e a de porrada. haha
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