São-paulino por um dia

Essa resenha é baseada em fatos reais. Qualquer semelhança com a vida do autor não é mera coincidência.

O raciocínio de um garoto de dez anos é uma coisa curiosa. Os acontecimentos tem sempre uma dimensão diferente nessa idade. Foi com dez anos que eu comecei a me interessar por futebol. Antes disso, era corintiano por herança - toda a minha família, até o primo mais distante, torce pelo alvinegro de Parque São Jorge. Era uma coisa já convencionada desde o berço - é corintiano, e pronto. E não seria eu quem iria frustrar a parentela, não é mesmo? Ainda falava, brincando, para o velho Nicola, meu vô: "Vou torcer pro Palmeiras". Ele respondia com um xingamento qualquer. Um barato meu saudoso avô.

A primeira grande emoção da minha vida de torcedor foi com a Copa de 94. Todo mundo diz, desde aquela época, que era uma seleção feia, que não encantava, o extremo oposto da lendária seleção brasileira de 82. Pra mim, pouco importava. Ainda hoje, não ligo. Romário, Bebeto, Branco, Taffarel, o Dunga erguendo o troféu, o Galvão Bueno narrando como nunca e "inventado" aqueles trejeitos que depois ficariam manjados - e enjoados. O jogo contra os Estados Unidos no 4 de julho, difícil pra dedéu. Contra a Holanda o gol de Branco, com o Romário desviando da bola em câmera lenta, à la Matrix. Muitas coisas marcantes. Depois vi a seleção ganhando outra Copa, mas não foi a mesma coisa. Provavelmente porque eu já tinha 18, e não mais os dez anos de outrora. Mas, enfim... Voltando a 94: lembro daquela agoniante final contra a Itália, de futebol travado e gols perdidos - e o Pagliuca dando "beijinhos" nas traves. Penalidades, depois de uma tensa prorrogação. Estava em Uberaba, na casa de parentes da minha mãe. Corintianos, todos eles - eu não disse a vocês? Eu não entendia ainda como funcionava a paixão futebolística. Viria a descobrir, tempos depois, que o clube de futebol é mais importante, mais intenso, mais mágico que tudo. Futebol é como o sexo, demora um pouco pra você aprender as mumunhas. Eu queria muito que o Brasil ganhasse - poxa, era uma Copa do Mundo, a primeira que eu assistia inteira e com consciência, e tava todo mundo ali torcendo junto. Queria contribuir de alguma forma, e só me ocorreu uma maneira: fui ao banheiro, entrei na área do box e, na minha humildade de garotinho, fiz uma oração, seguida de uma promessa: se o Brasil for tetra hoje, não torço mais para o Corinthians. Uma promessa tola, mas na época achava que compensava, como o sujeito que promete não beber nunca mais, ou como o outro que promete ficar um ano sem comer carne. Baggio chutou aquele pênalti pra fora e, depois de muita comemoração, contei a todos o que tinha prometido. Meus tios ficaram entre divertidos e irritados: "Mas como assim, rapaz? Vai virar a casaca? Não pode, pô!"

De volta a São Paulo, me empenhei para pagar meu compromisso com Deus. Os amigos não-corintianos fizeram lobby para seus times, tentando aliciar para suas agremiações o mais novo sem time da praça. Meu melhor amigo era palmeirense, contou-me toda a história do clube: a fundação, a ligação com a colônia italiana, a mudança de nome por causa da guerra. Naquele ano o Palmeiras tinha já um forte time, de começo de parceria com a Parmalat. A curto prazo, se eu tivesse mudado do preto e do branco pro verde, já começaria bem, pelo menos em termos de vitórias, de títulos. Mas, sei lá por que cargas d'água, escolhi como novo time o São Paulo Futebol Clube. Talvez essa mudança fosse menos agressiva? Pode ser. Palmeiras e Corinthians são como o dia e a noite. Doce e salgado, direita e esquerda, Coréia do Sul e Coréia do Norte. São Paulo FC é mais neutro, um ramo de rivalidade menos espinhoso. São conjecturas que não explicam a opção, e hoje vejo que a opção não tinha fundamento lógico. 

Aí então chegou o dia do primeiro jogo. Meu primeiro jogo como são-paulino. Não lembro contra quem, nem por qual campeonato. O resultado? Um empate. 0x0, se a memória não me trai. Os 90 minutos demoraram a passar. Foi tudo muito enfadonho. O abatimento chegou: vou ter que torcer por isso? E agora? Não rolou aquela identificação. Será que viria com o tempo? Eu não sentia muita firmeza naquela minha escolha. Talvez o melhor fosse largar mão, não torcer pra time nenhum. Afinal, olhando a letra fria da lei, meu contrato com o Poderoso só falava em largar o Corinthians, não em abraçar outro time. Mas, ficar sem time pra torcer, como deve ser? Talvez acompanhar outro esporte. Vôlei, quem sabe? Golfe? Bocha? Boxe - MMA nem existia naquela época. Da Fórmula 1 eu não queria mais saber: o Senna tinha partido meses antes, e sem ele o troço perdeu a graça. 

Minha mãe veio decidir a parada. Indagou o que estava acontecendo, ouviu o caso, deu o veredicto. Sorrindo, me disse: "Promessa de futebol Deus não escuta. É bobagem isso, filho". Se mamãe falou, tá falado. Mãe sabe de tudo. Voltei ao corintianismo. No final daquele mesmo ano, já estava chorando pelo Timão, que perdeu a decisão do Brasileiro pro Palmeiras, o time que eu havia rechaçado. Choraria outras vezes pelo Corinthians, de alegria e de tristeza  - às vezes penso que algumas derrotas do Timão estejam na conta de um castigo divino, por eu ter quebrado o pacto com o Hômi. Mas depois penso que minha mãe deve estar certa, promessa de futebol é que nem aposta de futebol: ninguém liga se você não paga. O fato é que o Corinthians, por ser o Corinthians, me reconquistou. Dessa vez para sempre, sem nunca ter, de fato, me perdido. Como diz a clássica marchinha: "Doutor, eu não me engano...". 

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