Cartesiano

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Por Rafael Gimenez*
Dizem que a menor distância entre
dois pontos é uma reta. Mas experimente colocar no meio do caminho uns beques
do tamanho de orangotangos, com as garras afiadas e dispostos a te parar por
bem ou por mal. Nesse caso, mudanças de itinerário são necessárias e não se
chega ao objetivo teimando em passar por caminhos obstruídos.
Na vida, como no jogo, é preciso
ter estratégia. É preciso prever os imprevistos, com a menor margem de erro
possível. O caminho que separa o guri que faz pacote no Carrefour do ganhador
do Ballon d’Or é árduo e não é pra gente mole. Conversa de malandro não faz
curva, mas sem gingado não se chega a lugar algum. Então sempre fui
ziguezagueando, desviando de bala, de porrada do volante, de puxão de camisa,
de puxar uma cana.
Quando cheguei no clube grande,
depois de ter me destacado no pequeno, eu não conhecia as mumunhas. Cheguei lá
e dei de cara com todos os cobrões. O centroavante do time mandou carregar a
bolsa dele, mandei-o pra puta que o pariu. Achei que ele ia me quebrar a cara,
ele somente me disse: “Não quer levar, não leva. Muito marrento pro teu tamanho”.
Senti na pele as consequências da minha intolerância. Almoçava isolado no refeitório,
nenhum companheiro tinha coragem de se aproximar, com medo de se indispor com o
líder. O treinador também comia na mão dele: não me escalava nos jogos e
alegava que era pra não me queimar, mas eu sabia que também era por cagaço. Um
dia, num jogo em que estávamos perdendo, o puto me chama: “Aquece que você vai
entrar”. Me colocou, eu corria pra lá e pra cá e não recebia bola. Encostava
pra receber do centroavante, ele tocava pra trás, voltando a jogada. Cheguei
nele: “Como é que é, vai ficar nessa putaria até quando?”, e ele me disse “Faz
o teu aí e não amola”. Perdemos aquele jogo, eu fiquei louco da vida porque mal
toquei na bola.
No outro dia procurei o cara, com
o rabo entre as pernas, disposto a pedir desculpas e ganhar a benção dele.
Precisava arrebentar naquele clube, era a chance da minha vida. Não era
autossuficiente pra peitar ninguém e agora eu tinha consciência do meu erro. Eu
ainda não era bosta nenhuma, e aquele cara já era o fodão. Entrei no quarto, ele e o companheiro de
concentração estavam no videogame. Eu perguntei se podia falar uma coisa, ele
respondeu “fala”, sem tirar os olhos do jogo. Comecei a falar, que eu queria
ser amigo deles, que o grupo podia contar comigo, que eu não era marrento, que
começamos com o pé esquerdo, mas que podíamos consertar. Notei que o sujeito
não estava prestando atenção no que eu tava falando e o sangue me subiu.
Arranquei o fio daquela porra de videogame da tomada. Ele então me olhou, meio
atônito. Aí disse: “Vamo resolver essa porra ou não? Não sou moleque, muito
menos você. Não precisamos ser parças, mas eu tenho que receber bola no jogo”.
Te ponho no bonde, ele me disse.
Disse que eu era sujeito homem. Que ele também era da quebrada. Que ele
valorizava meu esforço de ter chegado até ali pra buscar meu lugar ao sol. Mas
que quem chega, tem que chegar devagar. “Já teve preso?”, ele me perguntou.
Nunca, respondi. “Um tio meu teve em cana, por uma coisinha à toa. Foi currado
no presídio só porque chegou cheio de marra e não quis dar cigarro pro xerife
da ala. Virou mulher do xerife”. E completou com palavras que nunca esqueci: “Guri,
não tenta pegar atalho não. Às vezes o caminho mais longo é o mais certo”. Que
hoje o bambambã era ele, mas amanhã seria eu. Que eu tinha bola pra chegar
longe. Aceitei aquelas palavras. O “xerife” reuniu o grupo, apertamos as mãos
na frente de todos, selando a paz. No jogo seguinte, o treinador me botou aos
40 do segundo tempo. Entrei desanimado, em cinco minutos nem vou pegar na bola.
O centroavante, que era meio trombador, fez um jogada que fugia ao estilo dele:
pegou uma bola esticada e foi fintando quem aparecia pela frente. Corri
acompanhando a jogada, mais por desencargo de consciência. Quando ele driblou o
goleiro, o quinto jogador que ele enfileirava naquele lance, já me preparava
pra correr na direção dele e comemorar o gol. Eu vinha atrás da linha da bola,
e ele me viu. Rolou pra mim de presente, pra eu apenas empurrar pro gol vazio. Uma
distância de um metro entre dois pontos, sem obstáculos no caminho. Toquei, saí
pro abraço, o time todo veio comemorar. O jogo, como a vida, é um exercício de
geometria.