O Túnel

O conto que você lerá a seguir é uma estória em duas partes. A segunda parte será publicada na semana que vem. Todos os personagens são produto da imaginação do autor, e os clubes de futebol mencionados (Botafogo de Ribeirão, São Paulo, Vasco) apenas emprestam seus nomes para dar verossimilhança à estória. 


Fazia quatro meses. Chego em casa e estão lá Alice, Paulinha, Vitor. Um bolo com uma vela. Dr. Carneiro é o primeiro a me abraçar. Ele me fala: “você progrediu, mas ainda não conseguiu. Não está livre. Lembre-se: um dia por vez”. Eu sei.

Parei de jogar com 35 anos. Era um fantasma em campo: gordo, com os dois joelhos fodidos. Nem sombra do que fui 5 anos antes, no auge. Podia ter jogado Copa do Mundo, mas o temperamento não deixou. Mas não reclamo: se eu fosse diferente do que sou, teria feito o mesmo estrago? Ainda me param de vez em quando na rua pra falar do que fiz em Montevidéu, naquele jogo da Libertadores. A gente estava ganhando de 2x1, dois gols meus, e os uruguaios pra variar descendo o sarrafo o jogo todo. Lá pelos 30 do segundo tempo peguei uma bola na linha de fundo, um lançamento em profundidade que o próprio narrador da TV já dava como reposição em tiro de meta pro adversário. No que dominei, já tinha um brucutu em cima. Fiz o giro em cima dele e avancei até a linha lateral da pequena área. Veio outro marcador, daí resolvi tirar onda, driblei pra trás. Fui driblando pra trás, voltando toda a jogada, metendo rolinho nos otários, até que tomei uma porrada e o pau fechou. Acabamos ganhando aquele jogo e voltei pra casa como herói. Quando lembram desse jogo sinto um misto de orgulho e tristeza. Saudades.


Rapaz, você precisa sair dessa depressão. Não tem vontade de fazer alguma coisa, virar treinador?

Treinador? Eu? Eu só fiz merda, a minha vida toda. Quem vai me respeitar como treinador?

Monta uma escolinha, começa por baixo. Você precisa ocupar a mente, fazer alguma coisa que você goste.

Naquele mesmo dia o Zé Carlos, que jogou comigo no Botafogo de Ribeirão, ligou para o Teixeira e me indicou. Ele me chamou pra conversar com ele no dia seguinte. Fui.

Maneco! Satisfação, hein? Senta aí, senta aí. Bebe alguma coisa? Um uisquinho?

Ele perguntou sem maldade, força do hábito. Não me ofendi.

Só água, Teixeira. Um suco, se tiver.

Porra, Maneco, eu nem me liguei. Desculpa o mau jeito! [no telefone] Dona Lígia, traz um suco pra cá, por favor! [para mim] Maneco, seguinte: o Zé me ligou e me falou da sua situação. Você é um cara muito querido, nós estamos felizes que você tá se recuperando e queremos te ajudar de alguma forma. Aqui nós temos uma molecada boa, sabe? Acho que você pode ensinar muito a eles, você conhece como ninguém o mundo da bola...

[Interrompi] O da bola e o fora da bola.

Pois é, pois é... Sabe, cagada todo mundo faz, mas poucos sabem tomar porrada e aprender as lições. Acho que você pode ensinar muito pra esses guris que tão começando.

Tinha medo. E se eu fizesse merda outra vez? Mas o Zé tinha razão, o Teixeira tinha razão, Dr. Carneiro tinha razão, minha mulher tinha razão: eu precisava ocupar a mente, dar mais um passo pra fora do túnel. Topei. No dia seguinte assumi como treinador do Operário, um time semiprofissional, federado, que tinha tradição em relevar jogadores em São Paulo. Eles tinham convênio com um grande time do futebol profissional, e esse time ia buscar os moleques promissores lá. Minha primeira missão foi organizar uma peneira, e peneira no Operário bombava. Cheguei às nove e tinha uma fila de moleques, de 15 a 18 anos, esperando para serem avaliados.

Seguinte, molecada: quero saber a posição que cada um joga, e quero sinceridade. Sem essa porra de “sou coringa, jogo em todas”. Quem fala isso costuma ser uma merda em todas, isso sim. Vamo lá, formação militar, um do lado do outro, depressa, quero ver!

Fui olhando os moleques, medindo de alto a baixo. Nenhum tinha pinta de boleiro, exceto um neguinho meio vesgo, baixinho, perfilado por último. Colei nele.

Você, meu filho. Qual teu nome?

Marcelo.

Idade?

16.

Já jogou onde?

Joguei na várzea só. E joguei futsal.

Posição?

Jogo de atacante, professor. Caindo pelas pontas. Mas já joguei de meia e de lateral. Mas o senhor não quer que minta, então vou dizer que bom mesmo eu sou jogando na minha, de ponta de lança.

Distribuí os coletes, armei dois times. Não me enganei: o neguinho sabia do riscado. Mandei voltar no outro dia ele e mais seis. Passadas algumas semanas de testes, integrei-o ao plantel.


Dei o treino, passei na sala do diretor pra resolver uns assuntos. Me sentia bem, realmente era bom estar de novo envolvido com a bola, respirar aquele ar, sentir a adrenalina de disputar um campeonato. Nosso time ia jogar o sub-20 e, nos treinos, Marcelo se destacava. Era rápido, arisco, driblador. Era, também, pavio curto. Num dos rachões, partiu pra cima de um zagueiro com o dobro do tamanho dele, metade do time teve que segurar os dois, um quiprocó danado. Agora estava indo embora e encontrei-o na saída do vestiário, ajeitando o material numa sacola.

E aí, tranqueira? Não vai embora não?

Pô, professor, to fodido, sabe qual é? Tá tendo greve do busão, nem sei como vou voltar pra casa. Pra vim, vim de carona.

Tu mora onde?

Moro na Penha.

Eu moro lá perto, no Tatuapé. Vambora, te deixo lá.

Pude conhecer melhor o Marcelo. Me identifiquei com a malandragem dele, com as histórias todas. Minha infância foi igual a dele, e eu me via naquele moleque, com os mesmos sonhos, os mesmos dilemas. O pai dele se mandou quando ele tinha 4 anos, o meu morreu quando eu tinha mais ou menos essa mesma idade. Como eu, ele ralou desde pequeno pra ajudar no sustento da casa. Moleque guerreiro e sangue bom.


Dois anos depois Marcelo tava num time de futebol profissional, arrebentando. E eu continuava na base do Operário. De técnico, passei a coordenador. Pessoal curtiu meu trabalho, com um orçamento enxuto a gente conseguia garimpar e achar bons moleques, ganhávamos alguns campeonatos de aspirantes, tudo ia bem. Eu estava feliz, me sentindo leve como há muito não acontecia. Ia fazer três anos que eu não botava uma gota de álcool na boca, tinha deixado a putaria para trás e sem precisar fazer lavagem cerebral numa dessas igrejas de crente. Tava um dia na minha sala no Operário, fechando folha de pagamento, quando chegou o Zé Carlos:

Tá sabendo da merda que deu com o Marcelo?

Marcelo? Qual Marcelo, meu menino, o que eu achei? Que que tá pegando com ele?

O malandro sumiu do Vasco. Jogou no domingo, o time perdeu, era pra ter se reapresentado com o elenco na segunda. Mas ele não apareceu. Nem na segunda, nem na terça... Estão rolando uns boatos de que ele tá metido lá no Boréu...

Boréu? Que porra que esse moleque foi fazer em favela, Zé? Tá sem pé nem cabeça essa história. Olha, segura as pontas aí, eu vou pro Rio...

Calma, malandro, amanhã tem jogo dos moleques... E o Teixeira, vou falar o que pra ele?

Se vira aí, Zé, inventa uma história. O Marcelo é como se fosse meu filho...

O Marcelo era como se fosse meu filho. Mas fazia algum tempo que ele não me ligava. Na verdade, desde que se transferira para o Vasco. Fiz a viagem pensativo. Tem horas na vida que as coisas parecem que se repetem, como se Deus fosse um contador de histórias sem tanta criatividade pra bolar enredos diferentes. Chegando lá, entrei em contato com meus chegados que vivem na cidade. Confirmei a história do Boréu, liguei pro Carioca, meu mano – ou seria bróder? – desde os tempos de jogador e pedi pra ele ir comigo na bocada buscar o Marcelo. No dia seguinte saímos cedinho do hotel e fomos para o local. Subimos o morro e fomos parados quando chegamos lá em cima. Os caras me revistaram, deixaram entrar. Tava rolando uma festa, churrasco, neguinho armado, bebendo, alguns cheirando em plena luz do dia. Marcelo estava sentado numa cadeira de praia, sem camisa, com duas vagabundas do lado. Totalmente embriagado.

Pega tuas coisas, vamos embora agora!

Porra, professor! Fica tempão sem me ver e chega assim, nem um abraço me dá!

Abracei-o. Um outro sujeito se aproximou, perguntou se eu não era o Maneco do Santos. Queriam tirar foto. Mandei todos para a casa do caralho, puxei Marcelo pelo braço.

Qualé, professor? Vai tomar no cu! Tá pensando que manda em mim?

O desacato me deu vontade de dar-lhe um soco no meio da cara, pra colocar os olhos dele em alinhamento. Mas eu sabia o que estava acontecendo ali, e precisava fazer por ele o que não conseguiram fazer por mim.

Vambora. Tua mãe tá doente, tá morrendo num hospital.

Mentir. Era o único jeito de tirar ele dali sem ter que se arriscar a levar bala de bandido. Ele acreditou. Bêbado como estava, não foi difícil convencê-lo. Quando íamos saindo, um bandidinho me ofereceu uma cerveja. Encarei-o e, desgostoso, disse: “vai tomar no cu”. Atônito, ele nada disse. Soube depois que o bandidinho era o dono do morro.


Já no hotel, Carioca e eu demos um banho gelado em Marcelo. Depois ele caiu na cama e dormiu por 12 horas. Esperamos pacientemente que ele acordasse.
Salve, professor!

Puta que pariu, que agora virei babá de marmanjo. Só você mesmo pra fazer eu me desabalar de São Paulo até aqui e me enfiar em quebrada atrás de ti...

Não precisava, professor. Nunca quis dar pobrema pro senhor.

Bom, vai falando, que que tu aprontou. O que foi fazer no meio da vagabundagem? Como que me larga seu time em pleno campeonato, no melhor momento da tua carreira? E lá, que orgia tava fazendo? Narigou a branca também, como os outros?

Ele ficou ofendido:

Que é isso, professor? Tá me tirando? Eu sou atreta!

‘Atreta’? Atleta? Que porra de atreta/atleta é você que larga teu time na mão pra ficar na putaria? Vai enfiar tua carreira no lixo?

Que nem tu enfiou a tua, fessor...

[Indo pra cima dele] Me respeita! Me respeita, filho da puta! Além de eu ter te dado a primeira oportunidade, tenho idade pra ser teu pai! Fala direito comigo senão te enfio a mão...

Carioca interviu, me segurou. Marcelo começou a chorar. Nos abraçamos e choramos abraçados. Dinheiro, poder, fama, privilégios... O futebol é uma faca de dois “legumes”, como me disse uma vez Dr. Carneiro.

Se você tivesse me consultado, eu jamais teria deixado você sair do São Paulo. Você tava bem lá, sendo convocado pra seleção e o escambau...

Professor, na moral. O senhor tá certo, e eu não vou ficar justificando minhas cagada, sabe qual é? Mas eu precisava sair de lá, não tava dando pra mim lá. Só que eu vim pra cá achando que os pobrema ia ficar pra trás, mas não ficaram, professor. Os pobrema nunca fica pra trás, eles saíram comigo do barraco na Paraisópolis e foram pra Penha, depois saíram da Penha e foram comigo pro apê no Anália Franco, aí fugi pro Rio e os pobrema tão aí, batendo na minha porta, tirando meu sono. O clube me mandou pro psicólogo, e eu achei até uma boa. Achei que o psicólogo ia resolver meus pobrema, aliviar minha consciência. Mas chegava lá e o doutor ficava ouvindo eu falar, falar, falar, e dizia que estava tudo certo, que eu tinha que procurar as respostas dentro de mim mesmo. Procurar que respostas, professor? Fui procurar na cachaça mesmo.

E que problemas são esses, que não te deixam em paz?

Um é minha vida sempre ter sido essa merda. Antes era preto, feio e pobre, onde ia achava que as pessoas olhavam torto pra mim. Aí fiquei rico e famoso. As pessoas não começaram a gostar mais de mim, mas agora fingiam que gostava. Polícia me parava na rua pra dar geral, viam o neguinho na caranga fodida e aí já viu, né? Quando abria o vidro e me reconheciam, pediam desculpas, ficavam sem graça...

Passei por isso também, Marcelo. Tinha ódio do sistema.

Tô ligado, professor. Essas coisas geram revolta, mas deprimido mermo eu fiquei dois anos atrás, no meu primeiro ano de São Paulo. Coisa do coração. Me apaixonei pela filha de um conselheiro do clube. Branca, rica e linda. Nem tinha como ela gostar de mim, feio desse jeito, quase analfabeto... Mas acontece que ela gostou. Gostou de verdade. Maria-chuteira não era, a família tem muita grana. Começaram a dizer em todo canto que ela tava saindo comigo só pra revoltar o pai...

Mas você acha que era por isso?

Não, professor. Era amor mesmo. Sabe aquela música? Quem irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração?

Só ouço samba.

A Thaís gosta de rock, comecei a ouvir por causa dela. Mesmo contra a vontade da família, a gente começou a namorar. O pai dela teve que engolir, eu tava arrebentando no clube em que ele é conselheiro conhecido. Aí aconteceu que a Thaís engravidou. Quando me deu a notícia foi o dia mais feliz da minha vida. Queria casar com ela, tava gamadão.

E aí?

Aí quatrocentos anos da família dela pesaram contra quatrocentas desgraças da minha. Pai dela fez ela tirar o bebê. Disseram que foi aborto espontâneo, uma porra dessas, mas eu soube que ela foi numa crínica tirar o nenê. Depois, o pai dela deu ideia no presidente, ele é influente no clube. Cavaram a minha transferência. Quando pintou a proposta do Vasco, fui vendido. Tá entendendo agora, Seu Maneco? Eles foderam a minha vida.

Não acredito nisso...

É a verdade. Não tem um dia que eu não penso na Thaís. Em cada vagabunda que eu levo pra cama eu sinto o cheiro dela, o gosto da pele dela, a cara dela quando vai gozar. Achei que tava ficando louco aí, não tinha mais alegria pra nada. De vez em quando também tenho uns pesadelos cabulosos, com bebê chorando, umas coisas horríveis. Agora mesmo, dormindo aqui, sonhei que segurava meu filho pela mão, ele pendurado no precipício. Mas ele não tinha o peso de um bebê, sabe qual é? Ele pesava uma tonelada, meu braço doía e ele tava escorregando, ia cair lá embaixo no fundo do precipício. Professor, queria uma ajuda.

Eu precisava ajudá-lo a dar um passo para fora do túnel. Ah, que vida cabulosa. Como eu gostaria de poder beber alguma coisa agora.


Continua. 

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* Rafa Gimenez é jornalista, ex-poeta e contista.  Ama futebol, mas sempre foi um tremendo perna-de-pau. Escreve às quintas o "Resenhas inventadas", coluna de contos que tem o maravilhoso esporte bretão como tema central ou pano de fundo. 

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