Olha o gol, olha o gol, olha o gol, olha o gol...


“Tem que ficar na atividade, mermão! Não pode ficar de bobó! Desliga essa porra aí!”, advertiu-lhe Caveira. Ele argumentou que precisava acompanhar o jogo, era a final do Mundial de Clubes, Flamengo x Borrússia Dortmundo, Dortomundo, De Outro Mundo. “É nóis contra os alemão”.

“Fica ligado nos alemão daqui mermo, morou? Guerra é guerra!”

Quando Caveira afastou-se, Pierre ligou novamente a TV do celular. Era olheiro da organização, mas achava que a suposta tentativa de invasão do morro pelos alemão não passava de um blefe, de um boato plantado para alarmar os corações. Queria ver, nem que fosse em alguns lances, o jogo de seu time do coração. Além disso, Marquinho, moleque que ele vira crescer junto com ele – colado mesmo -, após uma série de lesões que quase lhe abreviaram a carreira, estava de volta ao Fla, se recuperara para jogar aquela final. Ele tinha certeza de que o moleque iria meter gol e o time sairia vitorioso. “O Mengão é o maior do mundo e o Marquinho é craque!”, pensou.

Pierre queria mesmo era estar ali, em Yokohama, em campo. “Deve ser maneiro o Japão, os maluco tudo de zóio puxado comendo macarrão de palitinho. Vários carrão, vários computador, até robô diz que tem lá. Ia curtir à vera e na hora do jogo, ia meter o gol e os japas tudo ia gritar meu nome”. Ser jogador de futebol era apenas um dos muitos sonhos que foram frustrados desde que nascera. Quando criança, sonhava ser astronauta e se imaginava pisando na lua, enquanto botava uma pipa no céu. Mas não teve muito tempo para devaneios. A mãe foi assassinada por uma bala, proveniente da pistola de um policial, durante uma troca de tiros. Ele jurou, nesse dia, matar quantos vermes conseguisse, para vingar a morte da progenitora. Ficou sozinho no mundo, o pai era desconhecido. Logo depois, entrou no movimento, enquanto seu amigo Marquinho fazia testes nas peneiras do Madureira, do América, do Flamengo. Gostava de jogar bola no campinho, mas a vida do crime lhe tirou a ginga. De ponta de lança alegre e irreverente, se tornou um meio-campista duro. De jogador solidário, virou um marcador desleal. Um dia deu um carrinho violento no adversário, cujo companheiro de time partiu para cima pra tirar satisfações. Pierre puxou o 38 da cintura, agora só andava armado, era do movimento. Os demais se afastaram, mas Jorjão, figura muito considerada no pedaço, veio dizer-lhe que ele nunca mais poderia jogar ali. De cabeça baixa, Pierre acatou, saiu e não voltou mais. Ele era do primeiro quadro, tinha amigos ali. Descobriu então que bandido não tem amigos, os amigos ficam todos pra trás. Soube depois que o rapaz em quem ele dera o carrinho rompera os ligamentos. Ficou com remorso, mas procurou pensar, para aliviar a consciência, que foda-se, o outro que ficasse mais ligeiro, tem que ficar na atividade, sempre. “Que vá dar rolinho na puta que o pariu”.

Agora estava ali, novamente sonhando. Tinha 22 anos. Ainda dava tempo? Arrumar um time. Se não desse, arrumar um emprego, pião em obra. Sair daquela vida. Estava cansado. Não tinha chegado nem a vapor e já tinha matado uma dezena de pessoas. Não queria matar mais ninguém. Não sentia prazer em matar ninguém, nem mesmo os policiais a quem tinha jurado vingança. Sua mãe era uma pessoa boa. Enquanto viva, tinha feito de tudo para afastá-lo do crime. Obrigava-o a ir à escola, onde ele ficou até o 4º ano do primário. Obrigava-o a ir à igreja. Na igreja ele gostava de ir, gostava de Deus, de Jesus e dos apóstolos, até o dia em que nenhum deles impediu a injustiça de sua mãe, que nunca fizera mal a ninguém, morrer daquela forma. Sentiu uma coisa molhada descer pela sua face, olhou pro céu, não estava chovendo. Não podia ser uma lágrima, ele nunca mais chorara desde que virou um bandido, chorar não é coisa de sujeito homem. Tudo parecia calmo, mas seu coração batia apressado, eram os alemães chegando, atenção, olha a bola nas costas do lateral, quem vai fazer a cobertura?, tira daí, tira daí, uuuuuuuuuuh. Ouviu barulho ao fundo, estampidos de AR-15, é o Borrússia, filhos da puta, alguém tem que chegar na contenção, os alemães mataram um menino na encosta, ele tinha só 8 anos e empinava pipa, acharam que fosse do movimento, esse beque do Mengo é muito fraco, tá louco pra entregar a rapadura, tem que ficar ligado, não pode ficar de bobó, vem chegando o urubu, o urubu sobrevoa a carniça, olha o Marquinho, vai partir pra cima da marcação, já levou no corpo, o corpo do menino de 8 crivado de balas, a mãe abraça o cadáver, esperneia, chora, grita, grita “tira essa bola daí!”, caralho, olha o ponta livre ali, fecha!, fecha!, fecha tudo, toque de recolher que os alemão tão chegando mesmo, todo mundo na atividade, fé em Deus, ah, meu Deus!, vai ser agora, o lateral foi pra linha de fundo, os alemão foram pra linha de frente, o lateral cruza, vamo trocar à vera, foda-se, quem cair caiu!, o zagueiro caiu, Marquinho subiu sozinho, os alemão vão subindo, Marquinho cabeceia, olha pra frente, bala zunindo na orelha, Pierre pára, é agora, olha o gol, olha o gol, olha o gol, olha o gol. Gooooooooooooooooooooool. Pá, pá, pá, pá. Éeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeé... é do Flamengooooooooo!!!!!!!

Fogos pipocavam no céu. Anunciavam a retirada dos alemão. O Flamengo é campeão do mundo. Caveira observa o cadáver de Pierre, nota o celular em suas mãos. “Avisei esse otário, tem que ficar na atividade, sempre!”. Logo depois sente pena, um aperto no peito. Retira o aparelho das mãos do parceiro, fecha-lhe os olhos. Nota que ele sorri, nota que ele está em paz. “Viva o Mengão”, pensou. 


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