Casa própria

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Surgiu então a oportunidade, um
gaiato veio contar que o portuga estava querendo se desfazer do terreno e já
tinha até estipulado o preço: 50 mil reais. Seu Pires descartou, era muito
dinheiro, não conseguiriam reunir a quantia. Além do que, não era só o gasto
com a compra: precisariam carpir o lote, limpá-lo, nivelá-lo, construir um
pequeno alojamento que serviria de vestiário e sede administrativa, plantar
gramado (estavam cansados de jogar em campos de terra batida). “Não custa ir
conversar com o portuga”, disse o rapaz. “Portuga morrinha, mas vou. Não
petisca quem não arrisca”, disse Seu Pires.
O português não se empolgou com a
possibilidade de vender o terreno para o time de futebol. Seu amor pelo esporte
era nulo, só lhe interessava ganhar dinheiro, e isso ele sabia que os sócios do
Rei de Lemos não tinham. Mas todo português é um sentimental. “Ó pá, se os
meninos precisam de campo, posso fazer por 40. Preço de mãe pra filho”, propôs.
Seu Pires deu uma boa olhada no
terreno. Era modesto, mas para o campo dava. Caberia uma pequena arquibancada
de madeira, para instalar os torcedores, num dos lados. No outro, o alojamento,
que eles mesmos poderiam construir em sistema de mutirão. O nivelamento também
era possível, não havia muitas irregularidades no solo. O duro seria levantar
os 40 paus que o portuga queria. Reuniu os sócios e falou da oportunidade,
única. Havia ali alguns pequenos comerciantes. Destes, o mais próspero era
Correia, um paraibano dono de um mercadinho. Propôs entrar com 10 mil reais.
Era a oferta mais generosa entre as feitas. Então Mendonça, morador do bairro
que não jogava no time, disse: “Podemos vender cotas. Cada um compra de acordo
com suas posses. Podemos ir aos outros bairros negociar essas cotas, até termos
o montante”.
Os demais queriam entender melhor
como funcionava esse esquema, e Mendonça explicou que era um modo de conseguir
as doações necessárias dando a impressão de que as pessoas estavam adquirindo
alguma coisa. Se tornariam sócios patrimoniais do clube e poderiam usar suas
instalações.
“Que instalações, porra?”,
retorquiu Seu Pires. “Lá só vai ter o campo”.
“Não tem importância. Todo mundo
gosta do time, podemos jogar campeonatos oficiais, vai entrar dinheiro. Além do
mais, o clube pode crescer no futuro... Tem que pensar grande!”
Decidiram então formar equipes
que iriam aos estabelecimentos comerciais de todos os bairros da região
arrecadar fundos. Tinham duas semanas para levantar o dinheiro, tempo em que
Seu Ramalho Ortigão seguraria a preferência de venda do terreno. Os primeiros
dias foram complicados: os vizinhos não se interessaram pelo projeto. Os
bairros vizinhos tinham seus próprios times, e os comerciantes não viam
naquelas cotas oportunidades de retorno comercial.
***
Enquanto Seu Pires se reunia no
barracão do clube para analisar os resultados obtidos naquela primeira semana
de peregrinações, uma reunião paralela acontecia alhures. A malandragem que
jogava num dos quadros do Rei de Lemos fazia suas elucubrações:
“Vamos fazer uns assaltos aí.
Dois assaltos e a gente reúne o que precisa, só meter um supermercado e já
era!”
“Você tá maluco, não vou nem
fudendo!”
“Vai amarelar? É por uma boa
causa!”
“Fecho contigo, Lúcio!”
“Eu também!”
“Fechou todo mundo então!”
Seis amigos, três jogadores do
primeiro quadro do Rei de Lemos e três do segundo, decidiam pelo crime para
levantar o dinheiro necessário à fundação do primeiro campo do time. Renan,
único dissidente, saiu sem nada dizer. Interpelado alguns metros à frente por
Piqueri, falou, lacônico: “Vão na fé”.
***
Planejaram
meticulosamente o roubo. Seria numa terça-feira à noite. O alvo: um pequeno
frigorífico, na zona sul. Acreditavam que teria muito dinheiro no local e
que, se a ação fosse corretamente esquadrinhada e bem executada, haveria poucos
riscos e grandes possibilidades de não serem necessárias outras investidas
criminosas. Piqueri passara dois dias andando pelas cercanias do
estabelecimento, verificando quantos funcionários ali trabalhavam, se a polícia
costumava passar pelo local, se havia câmeras, etc. Com sua velha lábia de
salivante, jeito de malandro e seu charme inconfundível, ganhou uma
funcionária. Dois coelhos com uma só “caixa d’água”: no motel, ela deu o
serviço. Sem desconfiar, contou para o assaltante tudo o que ele queria saber.
Não havia um sistema de segurança no local, apenas umas poucas câmeras e dois
vigias armados. Seria possível entrar, render os funcionários e fazer a limpa
em poucos minutos. Saindo do motel, foi direto encontrar os parceiros e
contou-lhes tudo. Ficou em boa conta, era considerado, seria titular do time
mesmo tendo dois pés esquerdos.
***
Seu Pires estava desolado.
Estava se esgotando o prazo e tinham reunido 15 mil reais, menos da metade dos 40
que Ramalho Ortigão queria, já inclusas as doações anteriores dos
sócios-fundadores. “Não tenho outra saída”, disse. Combinou com Xavier, o mecânico, a venda do
Opala de estimação, objeto de todos os seus cuidados, seu maior xodó.
***
Perto dali, as coisas davam
errado para os 6 atletas mais destemidos do Rei de Lemos. A primeira parte do
assalto deu certo, conseguiram render os 7 funcionários da sede administrativa
do frigorífico, no momento em que se preparavam para fechar as instalações e ir
embora. Porém, o gerente dificultou o acesso ao cofre e Cocão teve que
encrespar. Deu-lhe duas coronhadas que o deixaram desacordado.
“Os verme vão chegar! Vão chegar!
Vambora!”, advertiu Piolho, que estava de olheiro do lado de fora.
Piqueri então deu a ideia: “Tá
difícil a grana, vamo roubar um caminhão! A gente vende a mercadoria, só
picanha, filé mignon, carne de primeira! Dá pra levantar mais do que deve ter
no cofre, se pá! Atividade, ligeiro antes que os poliça pinte na situação!”
“Você
aí!”, disse Lúcio para uma funcionária que tremia no canto da sala, amarrada e
sob a mira da arma de Cocão. “Leva a gente pro depósito! Ligeirinho e sem
tentar nada!”
***
“Porra, Xavier! Essa máquina tá
zero bala! Olha direito! Não tô te vendendo cabrito não, as peça são tudo
original, motor original, olha aí!”
“Tá conservada memo, mas só posso
dar 10 conto. Pegar ou largar”.
Xavier
obviamente estava por dentro da necessidade de Pires por dinheiro. E também não
parecia estar muito comovido com os nobres fins para os quais serviria o
dinheiro. Pires não teve escolha, ali mesmo assinou um recibo de venda.
***
No
depósito, com a refém sob a mira do revólver, renderam o motorista do caminhão
e partiram. Antes averiguaram a carga e notaram que estavam com sorte: pelo
menos três toneladas de carnes nobres, que poderiam revender, acabavam de
chegar naquele momento para ser desembarcadas. Logicamente não conheciam
ninguém que transava esse tipo de mercadoria, mas dariam um jeito. Saíram em alta velocidade com o caminhão,
atropelaram a cancela e sumiram na noite.
***
Na
importante reunião final Seu Pires anunciava, jubiloso, que conseguiram reunir
a quantia necessária e que a compra do terreno já estava definida, faltando
apenas resolver os detalhes burocráticos. Entre vivas, palmas e muita euforia,
comunicou também a formação do novo quadro diretivo do clube, com participação
dos cotistas e no qual ele seria o presidente. E finalizou convidando a todos
para um churrasco, a ser promovido na nova sede, em comemoração àquela
conquista. “Os meninos do time fizeram um corre pra levantar dinheiro, disseram
que bateram a região toda pedindo”, explicou aos presentes. “E ainda fazem
questão de fazer o churrasco do bolso deles, só com picanha, maminha e mignon”,
finalizou, lambendo os beiços.
***
Humilhada,
ela chorava. Seu rosto era uma máscara de rancor e mágoa. Piqueri saía do
cinema de mãos dadas com aquela fulana, aquela gorda ridícula com o cabelo
pintado de loiro, com as raiz tudo aparecendo. Putinha. Cachorro. Lembrou-se do
que ouvira na TV: disque denúncia, seu anonimato é garantido. Discou e contou
tudo o que sabia.
***
O churrasco corria em clima de
total euforia. Muita carne, cerveja, uísque. Cocão chamou os amigos na encolha
para fumarem um, Seu Pires não podia ver, senão cortaria todos eles do time.
Estavam felizes, agora tinham casa, ninguém mais zombaria deles. Não perderiam
pra ninguém ali dentro, iam fazer daquilo um inferno, um caldeirão do diabo.
Quando não desse na bola, se garantiriam na porrada. Molecada do bairro teria
lugar pra jogar, talvez até livrassem alguns da sina provável de vida loka. Foi
Piqueri quem cortou o barato de todos, quando chegou esbaforido: fodeu, sujou
geral. Os verme tão chegando aí, sabem do roubo. Vambora, cada um pra sua
maloca!
Os policiais entraram, Seu Pires
foi falar com eles. Identificou-se como presidente do clube e futuro
proprietário daquele terreno. O capitão mandou que seus comandados averiguassem
tudo, que checassem o barracão improvisado. Um deles voltou com uma peça de
picanha nas mãos, apontou na carne o selo do frigorífico. “Tá aqui, capitão”. O
capitão deu voz de prisão a Seu Pires e ao português Ramalho Ortigão,
proprietário do terreno, presente ao churrasco de confraternização. Passaram
algumas horas na delegacia, acabaram liberados. Humilhado, com raiva, o
português desistiu de vender o terreno. Seu Pires chorou, bebeu por três dias.
Torrou o dinheiro da venda do Opala e o dinheiro dos cotistas. No bairro todos
diziam que havia enlouquecido.
* Rafa Gimenez é jornalista, ex-poeta e contista. Ama futebol, mas sempre foi um tremendo perna-de-pau. Escreve às quintas o "Resenhas inventadas", coluna de contos que tem o maravilhoso esporte bretão como tema central ou pano de fundo.