Casa própria



O terreno pertencia a um português de cerca de 60 anos, Ramalho Ortigão. Viúvo, proprietário de imóveis e de uma pedreira. Seu Pires, o fundador, foi pessoalmente com uma comitiva de moradores-jogadores analisar o local onde funcionariam as instalações do Rei de Lemos, o clube do bairro. O Rei de Lemos era afamado nos campos de várzea, mas não tinha local certo para mandar seus jogos. Atuava no campo do time do bairro vizinho, o que era uma maçada porque, além do aluguel do campo, jogava quase sempre para torcedores apinhados em acanhados espaços.

Surgiu então a oportunidade, um gaiato veio contar que o portuga estava querendo se desfazer do terreno e já tinha até estipulado o preço: 50 mil reais. Seu Pires descartou, era muito dinheiro, não conseguiriam reunir a quantia. Além do que, não era só o gasto com a compra: precisariam carpir o lote, limpá-lo, nivelá-lo, construir um pequeno alojamento que serviria de vestiário e sede administrativa, plantar gramado (estavam cansados de jogar em campos de terra batida). “Não custa ir conversar com o portuga”, disse o rapaz. “Portuga morrinha, mas vou. Não petisca quem não arrisca”, disse Seu Pires.

O português não se empolgou com a possibilidade de vender o terreno para o time de futebol. Seu amor pelo esporte era nulo, só lhe interessava ganhar dinheiro, e isso ele sabia que os sócios do Rei de Lemos não tinham. Mas todo português é um sentimental. “Ó pá, se os meninos precisam de campo, posso fazer por 40. Preço de mãe pra filho”, propôs.

Seu Pires deu uma boa olhada no terreno. Era modesto, mas para o campo dava. Caberia uma pequena arquibancada de madeira, para instalar os torcedores, num dos lados. No outro, o alojamento, que eles mesmos poderiam construir em sistema de mutirão. O nivelamento também era possível, não havia muitas irregularidades no solo. O duro seria levantar os 40 paus que o portuga queria. Reuniu os sócios e falou da oportunidade, única. Havia ali alguns pequenos comerciantes. Destes, o mais próspero era Correia, um paraibano dono de um mercadinho. Propôs entrar com 10 mil reais. Era a oferta mais generosa entre as feitas. Então Mendonça, morador do bairro que não jogava no time, disse: “Podemos vender cotas. Cada um compra de acordo com suas posses. Podemos ir aos outros bairros negociar essas cotas, até termos o montante”.

Os demais queriam entender melhor como funcionava esse esquema, e Mendonça explicou que era um modo de conseguir as doações necessárias dando a impressão de que as pessoas estavam adquirindo alguma coisa. Se tornariam sócios patrimoniais do clube e poderiam usar suas instalações.

“Que instalações, porra?”, retorquiu Seu Pires. “Lá só vai ter o campo”.

“Não tem importância. Todo mundo gosta do time, podemos jogar campeonatos oficiais, vai entrar dinheiro. Além do mais, o clube pode crescer no futuro... Tem que pensar grande!”

Decidiram então formar equipes que iriam aos estabelecimentos comerciais de todos os bairros da região arrecadar fundos. Tinham duas semanas para levantar o dinheiro, tempo em que Seu Ramalho Ortigão seguraria a preferência de venda do terreno. Os primeiros dias foram complicados: os vizinhos não se interessaram pelo projeto. Os bairros vizinhos tinham seus próprios times, e os comerciantes não viam naquelas cotas oportunidades de retorno comercial.

***
Enquanto Seu Pires se reunia no barracão do clube para analisar os resultados obtidos naquela primeira semana de peregrinações, uma reunião paralela acontecia alhures. A malandragem que jogava num dos quadros do Rei de Lemos fazia suas elucubrações:

“Vamos fazer uns assaltos aí. Dois assaltos e a gente reúne o que precisa, só meter um supermercado e já era!”

“Você tá maluco, não vou nem fudendo!”

“Vai amarelar? É por uma boa causa!”

“Fecho contigo, Lúcio!”

“Eu também!”

“Fechou todo mundo então!”

Seis amigos, três jogadores do primeiro quadro do Rei de Lemos e três do segundo, decidiam pelo crime para levantar o dinheiro necessário à fundação do primeiro campo do time. Renan, único dissidente, saiu sem nada dizer. Interpelado alguns metros à frente por Piqueri, falou, lacônico: “Vão na fé”.

***
Planejaram meticulosamente o roubo. Seria numa terça-feira à noite. O alvo: um pequeno frigorífico, na zona sul. Acreditavam que teria muito dinheiro no local e que, se a ação fosse corretamente esquadrinhada e bem executada, haveria poucos riscos e grandes possibilidades de não serem necessárias outras investidas criminosas. Piqueri passara dois dias andando pelas cercanias do estabelecimento, verificando quantos funcionários ali trabalhavam, se a polícia costumava passar pelo local, se havia câmeras, etc. Com sua velha lábia de salivante, jeito de malandro e seu charme inconfundível, ganhou uma funcionária. Dois coelhos com uma só “caixa d’água”: no motel, ela deu o serviço. Sem desconfiar, contou para o assaltante tudo o que ele queria saber. Não havia um sistema de segurança no local, apenas umas poucas câmeras e dois vigias armados. Seria possível entrar, render os funcionários e fazer a limpa em poucos minutos. Saindo do motel, foi direto encontrar os parceiros e contou-lhes tudo. Ficou em boa conta, era considerado, seria titular do time mesmo tendo dois pés esquerdos.

***

Seu Pires estava desolado. Estava se esgotando o prazo e tinham reunido 15 mil reais, menos da metade dos 40 que Ramalho Ortigão queria, já inclusas as doações anteriores dos sócios-fundadores. “Não tenho outra saída”, disse.  Combinou com Xavier, o mecânico, a venda do Opala de estimação, objeto de todos os seus cuidados, seu maior xodó.

                                                                               ***

Perto dali, as coisas davam errado para os 6 atletas mais destemidos do Rei de Lemos. A primeira parte do assalto deu certo, conseguiram render os 7 funcionários da sede administrativa do frigorífico, no momento em que se preparavam para fechar as instalações e ir embora. Porém, o gerente dificultou o acesso ao cofre e Cocão teve que encrespar. Deu-lhe duas coronhadas que o deixaram desacordado.

“Os verme vão chegar! Vão chegar! Vambora!”, advertiu Piolho, que estava de olheiro do lado de fora.

Piqueri então deu a ideia: “Tá difícil a grana, vamo roubar um caminhão! A gente vende a mercadoria, só picanha, filé mignon, carne de primeira! Dá pra levantar mais do que deve ter no cofre, se pá! Atividade, ligeiro antes que os poliça pinte na situação!”

“Você aí!”, disse Lúcio para uma funcionária que tremia no canto da sala, amarrada e sob a mira da arma de Cocão. “Leva a gente pro depósito! Ligeirinho e sem tentar nada!”

                                                                             ***

“Porra, Xavier! Essa máquina tá zero bala! Olha direito! Não tô te vendendo cabrito não, as peça são tudo original, motor original, olha aí!”

“Tá conservada memo, mas só posso dar 10 conto. Pegar ou largar”.

Xavier obviamente estava por dentro da necessidade de Pires por dinheiro. E também não parecia estar muito comovido com os nobres fins para os quais serviria o dinheiro. Pires não teve escolha, ali mesmo assinou um recibo de venda.

                                                                             ***

No depósito, com a refém sob a mira do revólver, renderam o motorista do caminhão e partiram. Antes averiguaram a carga e notaram que estavam com sorte: pelo menos três toneladas de carnes nobres, que poderiam revender, acabavam de chegar naquele momento para ser desembarcadas. Logicamente não conheciam ninguém que transava esse tipo de mercadoria, mas dariam um jeito.  Saíram em alta velocidade com o caminhão, atropelaram a cancela e sumiram na noite.

                                                                             ***

Na importante reunião final Seu Pires anunciava, jubiloso, que conseguiram reunir a quantia necessária e que a compra do terreno já estava definida, faltando apenas resolver os detalhes burocráticos. Entre vivas, palmas e muita euforia, comunicou também a formação do novo quadro diretivo do clube, com participação dos cotistas e no qual ele seria o presidente. E finalizou convidando a todos para um churrasco, a ser promovido na nova sede, em comemoração àquela conquista. “Os meninos do time fizeram um corre pra levantar dinheiro, disseram que bateram a região toda pedindo”, explicou aos presentes. “E ainda fazem questão de fazer o churrasco do bolso deles, só com picanha, maminha e mignon”, finalizou, lambendo os beiços.

                                                                            ***

Humilhada, ela chorava. Seu rosto era uma máscara de rancor e mágoa. Piqueri saía do cinema de mãos dadas com aquela fulana, aquela gorda ridícula com o cabelo pintado de loiro, com as raiz tudo aparecendo. Putinha. Cachorro. Lembrou-se do que ouvira na TV: disque denúncia, seu anonimato é garantido. Discou e contou tudo o que sabia.

                                                                             ***

O churrasco corria em clima de total euforia. Muita carne, cerveja, uísque. Cocão chamou os amigos na encolha para fumarem um, Seu Pires não podia ver, senão cortaria todos eles do time. Estavam felizes, agora tinham casa, ninguém mais zombaria deles. Não perderiam pra ninguém ali dentro, iam fazer daquilo um inferno, um caldeirão do diabo. Quando não desse na bola, se garantiriam na porrada. Molecada do bairro teria lugar pra jogar, talvez até livrassem alguns da sina provável de vida loka. Foi Piqueri quem cortou o barato de todos, quando chegou esbaforido: fodeu, sujou geral. Os verme tão chegando aí, sabem do roubo. Vambora, cada um pra sua maloca!


Os policiais entraram, Seu Pires foi falar com eles. Identificou-se como presidente do clube e futuro proprietário daquele terreno. O capitão mandou que seus comandados averiguassem tudo, que checassem o barracão improvisado. Um deles voltou com uma peça de picanha nas mãos, apontou na carne o selo do frigorífico. “Tá aqui, capitão”. O capitão deu voz de prisão a Seu Pires e ao português Ramalho Ortigão, proprietário do terreno, presente ao churrasco de confraternização. Passaram algumas horas na delegacia, acabaram liberados. Humilhado, com raiva, o português desistiu de vender o terreno. Seu Pires chorou, bebeu por três dias. Torrou o dinheiro da venda do Opala e o dinheiro dos cotistas. No bairro todos diziam que havia enlouquecido. 

* Rafa Gimenez é jornalista, ex-poeta e contista.  Ama futebol, mas sempre foi um tremendo perna-de-pau. Escreve às quintas o "Resenhas inventadas", coluna de contos que tem o maravilhoso esporte bretão como tema central ou pano de fundo.  

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