De como poderia ter sido (mas não foi)

https://futebolcartesiano.blogspot.com/2014/04/de-como-poderia-ter-sido-mas-nao-foi.html
Por Rafael Gimenez e André Diniz*
1970, Cidade do México. Clodoaldo tinha enfileirado 4 jogadores italianos e tocado de lado para Rivellino. Riva lançou Jairzinho, apelidado de “o Furacão da Copa”. Este tocou no meio para Pelé. Pelé, percebendo a passagem do capitão Carlos Alberto Torres, rolou na medida para ele, que enfiou uma bomba cruzada indefensável para o goleiro Albertosi. O Brasil era tricampeão do mundo e ficaria definitivamente com a Jules Rimet. No momento de recebê-la das mãos dos dirigentes da Fifa, Pelé pediu a palavra. Microfones ligados, o estádio Azteca e o mundo ouviriam o seguinte discurso (lido pelo Rei, mas escrito conjuntamente pelo grupo de jogadores): “Hoje é um dia de muita alegria para os brasileiros, mas nem todos estão felizes. O mundo precisa saber que no país do melhor futebol do mundo pessoas estão sendo perseguidas, torturadas e mortas. O país é governado à margem da lei, por militares, há seis anos. Há dois, todas as liberdades democráticas foram suprimidas pelo recrudescimento de um estado de exceção: O AI-5 entrou em vigor, o Congresso foi fechado, não existe mais habeas corpus. A imprensa está censurada e a população está alheia à situação de miséria em que vivem pessoas nas regiões mais ermas do país. Obras faraônicas e o combate à inflação, à custa de arrocho salarial para o trabalhador, são as bandeiras dos que estão no poder para iludir a classe média. Senhor presidente da Fifa, senhores chefes de Estado, amantes do futebol em geral: nós trocaríamos facilmente a Jules Rimet pela democracia. Não podemos levar para o nosso país um troféu banhado de ouro enquanto o povo vive na bosta”.
Doutor Roberto olhava atônito. As primeiras
palavras saídas da boca de Pelé eram como se fossem punhais. Ele só conseguia ter
a imagem mental de uma barragem cedendo. E não como nos desenhos animados, onde
o Pernalonga apenas coloca um dedo para estancá-la. Era uma tragédia. Ele
apanha o telefone, tenta falar com o operador da repetição do sinal
Via-Satélite. “CORTA JÁ!”, grita o dono das Organizações de Deus. Tarde demais.
A tevê sai do ar e o chuvisco toma conta no exato instante em que Pelé fala
“bosta”. A emenda fica pior do que o soneto. Doutor Roberto coça a cabeça. Não
sabe o que fazer. Não tem com o que ocupar as páginas guardadas para a Volta
dos Heróis. O grande trunfo. Aquilo que seria o símbolo máximo da conquista do
Brasil que ele ajudou a montar, e que ajudou-o a se montar. A capa do tabloide
do grupo, do dia 22 de junho de 1970, traz a morte do presidente Sukarno, líder
da Independência da Indonésia. Dar capa para Pelé seria repercutir o discurso. As
páginas de Esporte, se dependesse da vontade do dono do jornal, amanheceriam
vazias. Literalmente vazias. Mas, à parte o ódio e o desgosto, era preciso documentar.
Falou-se do jogo, da comemoração ensandecida dos mexicanos, que invadiram o
campo e roubaram camisas, calções, meiões e ataduras, deixando vários jogadores
nus em campo. Nenhuma vírgula sobre o discurso de Edson Arantes do Nascimento.
Não era preciso. O povo já sabia. Era pouca peneira para cobrir muito sol.
Nelson e
Armando conversavam na mesa do bar, naquela noite. Era alta a madrugada. Ambos
não tinham como dormir: Armando passara aquela noite tentando quebrar a cabeça
contra a parede, depois do que Pelé havia feito. Ele estava de coração leve.
Mas com a cabeça pesada, depois do vendaval. O mundo ao seu redor apenas
começava a arder em chamas, chamas que ele não sabia onde poderiam dar. E ele
tinha que pensar em algo para a edição do dia 22. Mas não dava. Que Walter e
Alice cuidassem disso. Eles davam conta. Nelson estava tão perdido quanto
Armando. Ele acompanhava aquilo com uma curiosidade quase mórbida. “O crioulo
perdeu a cabeça. Só pode”, desabafou com Armando, enquanto tentava engolir um
gole de leite no balcão do bar. Armando pediu cachaça.
No Brasil, o general Médici teve
uma crise de apoplexia ao ouvir o discurso. As autoridades entraram em pânico.
No Conselho de Segurança, um general do SNI, mais exaltado, propôs bater nos
jogadores, ameaçar as famílias. “Bater no Pelé? Tá maluco?”. “Devassem a vida
dele, vamos desacreditá-lo. Preparem a propaganda, o Brasil é o país do futuro,
Pelé é um demagogo caluniador”, teria proposto Golbery. “Tudo está perdido”,
disse Médici. “A opinião pública internacional vai ficar em cima, vamos ter que
abrir os porões para inspeção e provar que não há nada. Estamos fodidos!”. Me
liga com Washington, disse um general 4 estrelas para a telefonista.
* André Diniz é jornalista e escritor diletante, como o autor desta coluna. Colabora como autor convidado com estas Resenhas inventadas. É fã de blues e são-paulino.