De como poderia ter sido (mas não foi)

 Por Rafael Gimenez e André Diniz*



1970, Cidade do México. Clodoaldo tinha enfileirado 4 jogadores italianos e tocado de lado para Rivellino. Riva lançou Jairzinho, apelidado de “o Furacão da Copa”. Este tocou no meio para Pelé. Pelé, percebendo a passagem do capitão Carlos Alberto Torres, rolou na medida para ele, que enfiou uma bomba cruzada indefensável para o goleiro Albertosi. O Brasil era tricampeão do mundo e ficaria definitivamente com a Jules Rimet. No momento de recebê-la das mãos dos dirigentes da Fifa, Pelé pediu a palavra. Microfones ligados, o estádio Azteca e o mundo ouviriam o seguinte discurso (lido pelo Rei, mas escrito conjuntamente pelo grupo de jogadores): “Hoje é um dia de muita alegria para os brasileiros, mas nem todos estão felizes. O mundo precisa saber que no país do melhor futebol do mundo pessoas estão sendo perseguidas, torturadas e mortas. O país é governado à margem da lei, por militares, há seis anos. Há dois, todas as liberdades democráticas foram suprimidas pelo recrudescimento de um estado de exceção: O AI-5 entrou em vigor, o Congresso foi fechado, não existe mais habeas corpus. A imprensa está censurada e a população está alheia à situação de miséria em que vivem pessoas nas regiões mais ermas do país. Obras faraônicas e o combate à inflação, à custa de arrocho salarial para o trabalhador, são as bandeiras dos que estão no poder para iludir a classe média.  Senhor presidente da Fifa, senhores chefes de Estado, amantes do futebol em geral: nós trocaríamos facilmente a Jules Rimet pela democracia. Não podemos levar para o nosso país um troféu banhado de ouro enquanto o povo vive na bosta”.

Doutor Roberto olhava atônito. As primeiras palavras saídas da boca de Pelé eram como se fossem punhais. Ele só conseguia ter a imagem mental de uma barragem cedendo. E não como nos desenhos animados, onde o Pernalonga apenas coloca um dedo para estancá-la. Era uma tragédia. Ele apanha o telefone, tenta falar com o operador da repetição do sinal Via-Satélite. “CORTA JÁ!”, grita o dono das Organizações de Deus. Tarde demais. A tevê sai do ar e o chuvisco toma conta no exato instante em que Pelé fala “bosta”. A emenda fica pior do que o soneto. Doutor Roberto coça a cabeça. Não sabe o que fazer. Não tem com o que ocupar as páginas guardadas para a Volta dos Heróis. O grande trunfo. Aquilo que seria o símbolo máximo da conquista do Brasil que ele ajudou a montar, e que ajudou-o a se montar. A capa do tabloide do grupo, do dia 22 de junho de 1970, traz a morte do presidente Sukarno, líder da Independência da Indonésia. Dar capa para Pelé seria repercutir o discurso. As páginas de Esporte, se dependesse da vontade do dono do jornal, amanheceriam vazias. Literalmente vazias. Mas, à parte o ódio e o desgosto, era preciso documentar. Falou-se do jogo, da comemoração ensandecida dos mexicanos, que invadiram o campo e roubaram camisas, calções, meiões e ataduras, deixando vários jogadores nus em campo. Nenhuma vírgula sobre o discurso de Edson Arantes do Nascimento. Não era preciso. O povo já sabia. Era pouca peneira para cobrir muito sol.

 Nelson e Armando conversavam na mesa do bar, naquela noite. Era alta a madrugada. Ambos não tinham como dormir: Armando passara aquela noite tentando quebrar a cabeça contra a parede, depois do que Pelé havia feito. Ele estava de coração leve. Mas com a cabeça pesada, depois do vendaval. O mundo ao seu redor apenas começava a arder em chamas, chamas que ele não sabia onde poderiam dar. E ele tinha que pensar em algo para a edição do dia 22. Mas não dava. Que Walter e Alice cuidassem disso. Eles davam conta. Nelson estava tão perdido quanto Armando. Ele acompanhava aquilo com uma curiosidade quase mórbida. “O crioulo perdeu a cabeça. Só pode”, desabafou com Armando, enquanto tentava engolir um gole de leite no balcão do bar. Armando pediu cachaça.

No Brasil, o general Médici teve uma crise de apoplexia ao ouvir o discurso. As autoridades entraram em pânico. No Conselho de Segurança, um general do SNI, mais exaltado, propôs bater nos jogadores, ameaçar as famílias. “Bater no Pelé? Tá maluco?”. “Devassem a vida dele, vamos desacreditá-lo. Preparem a propaganda, o Brasil é o país do futuro, Pelé é um demagogo caluniador”, teria proposto Golbery. “Tudo está perdido”, disse Médici. “A opinião pública internacional vai ficar em cima, vamos ter que abrir os porões para inspeção e provar que não há nada. Estamos fodidos!”. Me liga com Washington, disse um general 4 estrelas para a telefonista.

Os jogadores foram recebidos de volta com festa. Mas, com medo de nova humilhação, o presidente da República não os convidou para a tradicional condecoração em Brasília. Queria receber Pelé e Cia como se nada tivesse acontecido, mas e se este fizesse novo discurso, ou simplesmente rechaçasse os cumprimentos do chefe de Estado? Um desfile em carro aberto da delegação tricampeã virou tumulto quando alguém, no meio da turba, atirou para o alto. Pensou-se logo num atentado contra Pelé. A população, furiosa, atacou estabelecimentos comerciais, prédios públicos, embaixadas.  Médici acabaria renunciando, sendo sucedido por um general linha branda. A pressão não diminuiria, o novo general-presidente acabaria deposto após uma série de grandes movimentos populares. Em 1972, com um presidente civil indicado pelo empresariado e avalizado pelos EUA, o Brasil voltaria à democracia. Pelé nunca jogaria no Cosmos.  

* André Diniz é jornalista e escritor diletante, como o autor desta coluna. Colabora como autor convidado com estas Resenhas inventadas. É fã de blues e são-paulino. 

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